“A lei sozinha não opera mudança”, alerta Fabiana Severi ao falar sobre os 14 anos da Maria da Penha
Criada com o objetivo de coibir a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral contra as mulheres, a Lei Maria da Penha completa 14 anos nesta sexta-feira (7). De acordo com Fabiana Cristina Severi, professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), a aprovação da legislação, em 2006, permitiu que o tema ganhasse “visibilidade social e deixasse de ser abordado, apenas, como um problema do nível das relações interpessoais, para ser compreendido em termos de relações sociais”.
Mas a pesquisadora faz um alerta: “a lei sozinha não opera mudança, a não ser a de nomeação dos fenômenos. E isso a Lei fez: nomeou a violência doméstica como violação de direitos humanos. O restante depende de compromisso dos poderes públicos, materializado por ações concretas, estruturadas por meio de políticas públicas e com aporte de recursos adequados. Temos uma fantasia, no Brasil, de que a gente resolve um problema social com a criação ou modificação de uma lei. Se essa nova lei trouxer um recrudescimento de penas, melhor ainda. Talvez, por isso, tivemos tantos projetos de lei propostos já em março deste ano, assim que a situação de calamidade de saúde pelo Covid-19 foi decretada.
Confira, a seguir, a entrevista com Fabiana.
Qual o panorama atual da violência contra as mulheres no Brasil?
Em geral, ficamos sempre muito impressionados com os números da violência contra as mulheres no país. Não é para menos, já que eles sugerem que o Brasil seja um dos países com os índices mais altos de violência contra as mulheres no mundo. Então, pode parecer que, apesar da Lei Maria da Penha, a violência contra as mulheres só vem aumentando. Não temos como afirmar isso de modo categórico, porque, antes da Lei Maria da Penha, a violência contra as mulheres, sobretudo a doméstica, era um fenômeno invisível à nossa sociedade, marcadamente sexista e racista. Então, prefiro pensar nas mudanças significativas ocorridas nesses últimos 14 anos em relação à compreensão da sociedade brasileira sobre o fenômeno. A aprovação da Lei permitiu que o tema ganhasse visibilidade social e deixasse de ser abordado, apenas, como um problema do nível das relações interpessoais, para ser compreendido em termos de relações sociais. A Lei também ofereceu uma gramática que tem viabilizado a compreensão de outros tipos de violência contra as mulheres e das suas manifestações desiguais ou mais agravadas, a depender de outros marcadores de diferença, como raça-etnia, orientação sexual, origem territorial etc. Há, portanto, significativa mudança social e cultural em relação à tolerância e à aceitação da violência contra as mulheres no Brasil, antes naturalizada. E, apesar dessa maior compreensão e visibilidade, as respostas estatais, em termos de políticas públicas e serviços de enfrentamento à violência contra as mulheres não seguiram, nos últimos 14 anos, um processo de crescente fortalecimento. Muito pelo contrário, vários estudos e levantamentos recentes têm demonstrado uma queda expressiva dos orçamentos públicos nos últimos quatro anos, sobretudo federais, antes destinados à implementação dessas políticas. Os serviços também estão sendo desmontados na maior parte do país. Então, como panorama geral, podemos dizer que apesar da maior visibilidade do fenômeno da violência oportunizada pela Lei Maria da Penha e dos dados que sugerem um crescimento constante de múltiplas e interseccionais formas de violência contra as mulheres no país, os poderes estatais, em especial, o Poder Executivo, têm mantido um padrão de omissão em relação ao seu dever, previsto na Convenção de Belém do Pará, de devida diligência na prevenção, investigação, sanção e reparação da violência contra as mulheres.
Aumentou a violência contra meninas e mulheres, em especial a doméstica, durante a pandemia de Covid-19. Mensurar essa violência tem se mostrado um desafio na medida em que muitas das mulheres estão confinadas com seu agressor e tem enorme dificuldade de fazer a denúncia. Que fatores contribuem para o crescimento da violência doméstica nesse período?
Um primeiro aspecto dessa pergunta é a questão dos números da violência. Tem um artigo escrito recentemente pelas pesquisadoras Wânia Pasinato e Elisa Colares, que pontua muito bem diversas dimensões do problema relativo aos dados sobre a violência doméstica no país. Uma ideia importante defendida por elas ali: ainda não temos, no país, modelos de construção de dados sobre a violência doméstica produzidos com o rigor suficiente para que possamos evidenciar a evolução do fenômeno no país e saber, o que exatamente, está acontecendo nesse momento. Não estou sugerindo que violência doméstica não tenha se agravado neste período de pandemia (…) Mas, não podemos afirmar que a violência doméstica aumentou baseando-se, por exemplo, no aumento do número de registros policiais, de demandas judiciais ou de chamadas virtuais, já que ele pode representar, apenas, o aumento na procura por esses serviços, como efeito das campanhas de divulgação deles, intensificadas logo no início da pandemia. Então, precisamos, sim, avançar na construção de bancos de dados e de modelos estatísticos capazes de nos ajudar a entender a evolução do fenômeno da violência contra as mulheres e poder dizer, com maior rigor, que houve um aumento. Todavia, nossa questão mais urgente, até dramática, refere-se à nossa capacidade em avaliar a qualidade e a quantidade dos serviços públicos disponíveis hoje às mulheres em situação ou vítimas de violência. Há a necessidade de compreendermos, nesse momento, não apenas as formas como a violência doméstica têm se manifestado nesse período de pandemia, mas também como os serviços públicos têm respondido a ela. A conversão dos atendimentos em modelos remotos foi uma das primeiras iniciativas da maioria dos órgãos do sistema de justiça, por exemplo (Judiciário, Defensorias e Ministério Público). Isso, por si, favorece a continuidade dos atendimentos às mulheres que têm acesso à internet ou têm um celular não compartilhado com outros membros da família. E as mulheres mais expostas a condições agravadas de violência, estão conseguindo chegar a esses serviços? Se chegam, qual a qualidade da resposta a elas e seus familiares? A outra questão refere-se aos fatores que favorecem o aumento da violência durante a pandemia. São muitos os fatores e já sabemos, por alguns levantamentos realizados até o momento, que distanciamento social tem resultado em maior sobrecarga de trabalho das mulheres ligado aos cuidados, em perda de renda e trabalho e em níveis variados de insegurança e vulnerabilidade, sobretudo entre mulheres negras e racializadas, mulheres chefes de família, trabalhadoras domésticas, trabalhadoras informais, desempregadas. Na linha do que os estudos feministas e o movimento de mulheres historicamente têm reforçado desde antes da criação da Lei Maria da Penha é que o ambiente doméstico e familiar nunca foi um espaço seguro para muitas mulheres. E se isso não estava ainda claro para alguns segmentos sociais, esse momento de pandemia não deixa mais espaço para dúvidas.
Qual o balanço que fazes destes 14 anos da Lei Maria da Penha?
A Lei Maria da Penha tem favorecido um alargamento da compreensão sobre o fenômeno da violência contra as mulheres no país. Apesar de focar na violência doméstica, hoje sabemos mais sobre a cultura sexista e racista que estrutura as relações sociais no Brasil e sobre como essa cultura reforça e legitima múltiplas e interseccionais formas de subordinação das mulheres, não só no ambiente familiar, mas também no espaço público, nas relações de trabalho, na política etc. Mas, ainda precisamos ultrapassar uma leitura até então muito reiterada, sobretudo no sistema de justiça e segurança pública, que enfatiza as dimensões penais da Lei. Essa é uma leitura muito reducionista do modelo de resposta por ela previsto. Nas minhas pesquisas sobre o tema, tenho tentado entender essa ênfase como uma das principais dinâmicas de domesticação da Lei Maria da Penha. Então, acho que ainda precisamos reforçar outras leituras da Lei, que fossem capazes de intensificar o entendimento da Lei como parte do que chamo de projeto político-jurídico feminista, baseado em demandas por democratização radical da sociedade brasileira e das suas instituições políticas e jurídicas.
A Lei Maria da Penha é suficiente para garantir a proteção das mulheres neste momento de pandemia?
A Lei Maria da Penha é um instrumento de políticas públicas para as mulheres. Ela oferece muitas diretrizes importantes que servem para a estruturar as respostas públicas de enfrentamento à múltiplas e interseccionais formas de violência contra as mulheres. Os conceitos, por exemplo, de intersetorialidade, atendimento integral, atuação em rede de serviço ajudam a estruturar respostas para vários contextos distintos em que a violência doméstica pode se agravar. Mas a lei, sozinha, não opera mudança, a não ser a de nomeação dos fenômenos. E isso a Lei fez: nomeou a violência doméstica como violação de direitos humanos. O restante depende de compromisso dos poderes públicos, materializado por ações concretas, estruturadas por meio de políticas públicas e com aporte de recursos adequados. Temos uma fantasia, no Brasil, de que a gente resolve um problema social com a criação ou modificação de uma lei. Se essa nova lei trouxe um recrudescimento de penas, melhor ainda. Talvez, por isso, tivemos tantos projetos de lei propostos já em março deste ano, assim que a situação de calamidade de saúde pelo Covid-19 foi decretada. O Consórcio Lei Maria da Penha produziu uma Nota Técnica analisando esses projetos e dando diversas sugestões às parlamentares. Parte dessas sugestões foram incorporadas ao texto final da Lei Federal n. 14.022/2020. A aprovação dessa lei seria dispensável se as políticas e os serviços da rede de enfrentamento à violência doméstica não estivessem passando pelo atual desmonte. Essa nova lei, então, acaba reiterando aspectos que poderiam ser decorrentes de uma interpretação da Lei Maria Penha referenciada nos documentos internacionais de direitos humanos das mulheres e nas análises até aqui realizadas sobre a sua implementação.
É possível afirmar que a sociedade passou a prestar mais atenção à violência contra a mulher durante a crise sanitária?
Assim que a crise sanitária se instalou no Brasil, o assunto da violência contra as mulheres tomou rapidamente a atenção da mídia brasileira. Mas, no início, isso foi em parte decorrente da visibilidade que o assunto ganhou em outros países e da recepção de uma série de documentos e notas feitas por organismos internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres. Também ganhou espaço nos debates em razão da capacidade dos movimentos de mulheres e feministas brasileiros em pautarem a urgência de se pensar em medidas que pudessem mitigar os efeitos da pandemia sobre as mulheres no Brasil. Passado já quase cinco meses, já podemos visualizar inúmeros efeitos da pandemia sobre as condições de vida das mulheres e seus familiares. Alguns casos amplamente noticiados durante esse período também explicitaram algumas das formas pelas quais a violência doméstica se intersecciona com outras formas de violência contra as mulheres. Podemos citar aqui a morte do menino Miguel, de 5 anos, ao cair do prédio em que a mãe dele, Mirtes Renata, trabalhava como empregada doméstica. Sem poder contar com a escola e com algumas redes de apoio que comumente acionavam antes da pandemia, como avós, vizinhas etc., muitas mulheres passaram a exercer atividades de trabalho, dentro e fora de casa, com seus filhos junto delas. As trabalhadoras domésticas, historicamente uma das categorias laborais mais precárias em termos de garantias, foram coagidas a manter o trabalho, mesmo com o risco de contágio, sob pena de dispensa ou demissão. O caso explicita, então, as múltiplas formas de violência a que a categoria das trabalhadoras domésticas estão sujeitas e que foram agravadas durante a pandemia: o racismo, o assédio moral e sexual, a desvalorização de suas atividades pela sociedade, a estigmatização, os baixos salários e a sobrecarga de trabalho.
Qual o papel da educação contra a violência de gênero?
Há uma ênfase muito grande, por parte da mídia, do sistema de justiça e da própria academia, nos aspectos penais da Lei Maria da Penha. Sabemos que ela trouxe consequências penais mais severas do que o existente até então. Mas, o que pouco se falou foi que uma das principais inovações da Lei foi a ênfase que ela deu às medidas de prevenção às múltiplas e interseccionais formas de violência contra as mulheres. Dentre tais medidas, a principal aposta foi na educação. O artigo 8º da Lei preconiza, como uma das principais diretrizes de prevenção à violência doméstica, a inclusão dos conteúdos de gênero, raça-etnia, direitos humanos e violência doméstica nos currículos escolares de todos os níveis de ensino e programas de capacitação. Além da ênfase na educação formal, a Lei também preconiza a permanente promoção de campanhas educativas e estudos sobre o tema. Há algumas ações no Supremo Tribunal Federal discutindo a constitucionalidade de várias leis estaduais e municipais voltadas a combater o que alguns grupos têm nomeado recentemente de “ideologia de gênero” ou de “doutrinação de gênero” nas escolas. Um aspecto em favor da declaração da inconstitucionalidade dessas leis é que elas afetam diretamente essa dimensão da Lei Maria da Penha, a dimensão de prevenção à violência por meio da educação.