Machismo: o jogo virou?
Como será que andam sendo as conversas de quem, mesmo habitando a internet, ainda brada que “não existe machismo (ou racismo, ou homofobia, ou…)”? Perguntar não ofende, e ao final deste fevereiro de dois mil e dezesseis, com tantas evidências destes fenômenos nas redes sociais, francamente, parece impossível continuar fingindo que machismo [ou…] não existe.
Há uma década, na primeira infância da internet, não sabíamos qual seria o impacto da proliferação de vozes dissidentes que, nela, viram uma oportunidade de potencializar suas militâncias. Não é apenas na internet que se dá a resistência, mas foi ali que o volume de suas vozes foi amplificado, o que tornou mais fácil a obtenção de informações produzidas por movimentos sociais.
Lembremos que há bem pouco tempo as vozes que propagavam este tipo de conhecimento eram quase que completamente silenciadas por filtros midiáticos, que mantinham o domínio do debate público acerca do que era certo ou justo nas mãos de poucos homens brancos.
Sendo assim, até muito recentemente, para saber o que diziam os proponentes de mudanças na sociedade, era preciso ou estar na presença física da militância, ou ter o capital econômico, social e cultural para adquirir literatura a respeito.
Por anos, e por pura falta de acesso a dispositivos comunicativos de alcance de massa, as vozes da dissidência falavam muito mais consigo mesmas, nas ruas ou nos meios acadêmicos, do que com o público em geral.
E enquanto o status quo, através do poder de abrangência de seus instrumentos de mídia, afirmava que estava tudo bem, era razoavelmente compreensível que se desconfiasse que machismo [ou…] fosse invenção de gente vitimista. Nunca foi, e se hoje isso é óbvio, é porque as vítimas do preconceito, que sempre foram perfeitamente capazes de oferecer críticas ao sistema de forma muito bem articulada, não mais penam com a escassez de espaços para divulga-las além dos círculos militantes.
Já é consenso que foi o advento das redes sociais (em sua maioria também de propriedade de homens brancos, que fique o registro) que permitiu que cada cidadã se transformasse em seu próprio veículo de comunicação. Todos os dias, horas, minutos e segundos milhares de vozes se fazem ouvidas nos Facebooks e Twitters da vida.
A resistência está angariando massa crítica como nunca antes visto, e a quantidade de denúncias à opressão cresceu de forma exponencial: é só prestar atenção em campanhas como #primeiroassédio e #blacklivesmatter. Por isso retorno à pergunta inicial do texto: como é possível, com tantos indícios disponíveis na internet, que se duvide da existência de preconceito?
Judith Lorber, uma das teóricas fundamentais da formação dos estudos de gênero, relata manter um arquivo de clipagens de revistas e jornais, coletados no espaço de 25 anos, com artigos que dizem as mesmas coisas: poucas mulheres em posições de liderança nas grandes corporações, desigualdade representativa nos governos, sobrecarga de trabalho doméstico para as casadas e/ou com filhos, impedimentos na descriminalização do aborto, e outras tantas.
Este arquivo ela chama de Plus ça change, em referência à epigrama de Jean-Baptiste Alphonse Karr, “Plus ça change, plus c’est la même chose” (em tradução livre “Quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas).
E se a internet pode ser celebrada, por uns, por ser palco para multiplicação das vozes dos movimentos sociais, precisamos manter em mente que, para outros, é interessante que tudo continue igual.
Assim, a internet não é, necessariamente, um espaço seguro: ainda há muita violência online, real ou simbólica, especialmente contra as mulheres. A internet tampouco está isenta de filtros que silenciam a dissidência: ativistas de diversas causas vêm tendo seus perfis bloqueados pelo Facebook, por causa de trolls e haters que orquestram denúncias falsas para, literalmente, impossibilitar falas incômodas.
Como ativistas de internet, estamos crescendo em número – e como feministas, na #sororidade online viemos colaborando e ajudando umas às outras como nunca. Mas o jogo está longe de virar, pois ainda há muito #patriarcado, racismo e preconceito sistêmico para desconstruirmos.
E para sairmos do impasse de que Lorber corretamente reclamou, talvez a saída seja lembrar que a intenção não é que o jogo vire, pois não é de um jogo que isso se trata, mas sim das nossas vidas. Machismo [ou…] existe, e não é silenciando ativistas de internet que o trem da exposição do preconceito vai parar. Ao menos este “jogo” a internet “virou”.
Fonte: Carta Capital