Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Artigo de opinião: Comemorar o 25 de julho para celebrar a resistência negra feminista afro-latina caribenha

 

 

 

 

 

 

 

Winnie Bueno

Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

O dia 25 de julho é comemorado por toda a América Latina e Caribe como a data que celebra a mulher negra latina e caribenha. Essa data surge como reflexo da relevância da articulação internacional das mulheres negras , que na virada do século XX para o século XXI pactuam enquanto estratégia política a construção do feminismo negro em caráter transnacional. Omaris Zamora[1], em sua tese de doutorado, nos convida a refletir onde estão localizadas as mulheres afro-latinas e caribenhas  quando pensamos em transnacionalismo, diáspora africana e identidades.  Reconhecer essas vozes coletivas como arquivos necessários para a construção da teoria e práxis política feminista de forma ampla, onde os silenciamentos do racismo epistêmico não sejam a tônica, é o desafio que está colocado para as feministas da contemporaneidade. As bases teóricas que mobilizo neste texto tem a função de romper barreiras, fronteiras, muros para a formulação de um conhecimento de oposição, informado por mulheres afro latinas e caribenhas como uma ferramenta teórico crítica para a justiça  social.

 

A afrolatinidade está inscrita em memória, história, linguagem, está inscrita na diáspora e nas mudanças que a presença negra produziu por toda a América, sobretudo, está inscrita em uma transgressão, em sujeitos que rejeitam concepções essencialistas sobre si para eclodir subjetividades auto-definidas. Compreender o pensamento feminista afro latino caribenho é compreender que as noções essencialistas de raça e migração, corriqueiras no pensamento hegemônico, não reconhecem as subjetividades de mulheres negras latino americanas e caribenhas. Parto, portanto,  do princípio que o pensamento feminista afro-latino caribenho  não pode ser único porque somos diversas[2].

 

O feminismo afrolatinocaribenho busca o reconhecimento, a memória e a visibilidade das estratégias que mulheres negras latinas e caribenhas organizaram a partir de suas próprias experiências para propor argumentos teóricos que informem sua atuação política. A práxis teórica que acompanha essa atuação considera a tradição oral, a resistência ao colonialismo e a escravidão, e a defesa da mudança social e cultural a partir de uma outra inscrição sobre o lugar das mulheres. Durante os movimentos feministas do século XX, inscreve-se um outro panorama teórico feminista negro e latino, as feministas afro latinas e caribenhas utilizam a memória histórica como uma forma de afirmar que o feminismo é originado a partir dessas mulheres, estando as mesmas produzindo uma práxis feminista muito antes dos anos 60 e 70.

 

É importante dizer que nas centenas de cursos, palestras, ementas que tratam a respeito do feminismo , e até mesmo do feminismo negro, é pouco frequente que se encontre contribuições de mulheres negras que teorizam a partir do seu lugar enquanto mulher latina.  Os escritos focados em negritude, latinidade e gênero, mesmo no contexto brasileiro, aproximam-se mais das experiências de mulheres negras estadunidenses do que de mulheres negras uruguaias, colombianas, bolivianas, dominicanas.

 

As múltiplas opressões que são experienciadas por mulheres afro latinas caribenhas não se esgotam em relação ao seu gênero, identidade cultural e raça. A própria omissão ou ausência de literatura sobre as experiências dessas mulheres, constitui-se  enquanto opressão, epistêmica.  A forma com que uma ideia de democracia racial informa a narrativa cultural de parte significativa dos países da América Latina e do Caribe, é  uma forma de silenciamento das mulheres afro-latino caribenhas, as quais são acusadas de divisionistas quando reivindicam espaços onde possam articular estratégias próprias para enfrentar as múltiplas opressões que lhes atingem.

 

Outra questão relevante para compreender como que o feminismo afro latino e caribenho  se articula , está na forma com que o debate a respeito das questões da raça negra estão organizadas a partir do pensamento estadunidense.  Os espaços que são ocupados por estas mulheres são instáveis, e em razão da forma com que a categoria raça é mobilizada no contexto estadunidense as mulheres afro latinas e caribenhas não são percebidas nem enquanto latinas nem enquanto negras. Ocorre portanto uma necessária política e teorização de reconhecimento dessa identidade.  Segundo Ana Maurine Lara, poeta lésbica dominicana, romancista e estudiosa feminista negra, a invisibilidade e as negociações que as mulheres afro-latinas e caribenhas  precisam fazer para o reconhecimento de suas identidades são parte essencial da compreensão da complexidade da identidade latina e negra. A categoria de Amefricanidade, proposta por Lélia Gonzáles, é relevante nesse sentido. Lélia propõe um feminismo afrolatinoamericano, comprometido com a recuperação dos processos de resistência e insurgência aos poderes estabelecidos, ainda, em sua maioria, ocultos, mas que historicamente foram levados a termo por mulheres negras e indígenas contra o colonialismo e podem servir de fonte de inspiração para ações políticas feministas descolonizadoras[3].

 

Claudia Pons Cardoso é precisa ao demonstrar como que Lélia Gonzales desafiou as categorias políticas e intelectuais dominantes para propor um pensamento próprio, auto-definido e transgressor. Em seus textos, Lélia Gonzales inclusive utiliza uma linguagem fora do padrão acadêmico, desafiando normas e pré- estabelecimentos.  O “pretoguês” de Lélia é uma forma de demonstrar como que as influências africanas e indígenas desafiaram a língua do colonizador, uma marca que se encontra na diáspora africana.  Diáspora esta que é uma marca do que Lélia Gonzales chama de amefricanidade, a categoria de amefricanidade tem sido utilizada por diversas intelectuais negras brasileiras para inscrever um pensamento que ultrapasse fronteiras geográficas e que reconstitua uma identidade política afrolatinacaribenha.

 

As intelectuais negras, acadêmicas ou não, da América Latina , África e Caribe que tem proposto um feminismo marcado  não pela tradução de teorias da branquitude, mas pela cunhagem de ideias protagonistas do pensamento de mulheres afrolatinacaribenhas a partir de suas próprias experiências, que são múltiplas, são as protagonistas da mudança social que o mundo precisa.  O pensamento destas mulheres está na posicionalidade fluida que é capaz de reconhecer e articular as inúmeras transformações que as mulheres afro-latinas experimentam, cuja  produção intelectual justapõe os estudos feministas negros e latinos, desafiando a essencialização dessas identidades políticas bem como destacando um contexto transnacional centralizado pela  categoria de diáspora africana[4].

 

A partir do pensamento de Betty Lozano Lerna podemos dizer que o feminismo afrolatinocaribenho ultrapassa a ideia de  “negação das categorias com as quais o mundo foi interpretado da Europa”[5]. O pensamento feminista afrolatinocaribenha se propõe a algo muito maior do que a abertura das ciências sociais e suas categorias.  O que essas mulheres têm proposto é “uma profunda crítica ao paradigma europeu que propõe a modernidade como um projeto emancipatório para toda a humanidade”[6]. Para Lozano Lerna “O feminismo tem sido principalmente branco e ocidental. Isto significou que em muitas ocasiões aqueles que fazem parte do movimento assumem o moderno habitus colonial[7]”  Para Aurora Vergara Figueroa[8] o  feminismo afrolatinocaribenho é uma conspiração feminista afrodiaspórica, compreendida enquanto “um espaço de intercambio, reconhecimento, discussão, produção de conhecimento e cumplicidade.”[9] Uma conspiração que não se resume a longos discursos e apresentações de relatórios, mas também a leitura de poesia, a musicalidade e palavras de esperança.

Celebremos as potências dessas mulheres.

 

 

[1] ZAMORA, Omaris Zunilda. (Trance) formations of an AfroLatina: embodied archives of blackness and womanhood in transnational Dominican women’s narratives. 2018. Tese de Doutorado.

[2] LOZANO LERMA, Betty Ruth et al. El feminismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas: aportes a un feminismo negro decolonial desde la experiencia de las mujeres negras del Pacífico colombiano. Revista La manzana de la discordia, v. 5, n. 2, p. 7-24, 2010.

[3] CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 965-986, 2014.

[4] https://latinxtalk.org/2017/11/28/expanding-the-dialogues-afro-latinx-feminisms/

[5] LOZANO LERMA, Betty Ruth et al. El feminismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas: aportes a un feminismo negro decolonial desde la experiencia de las mujeres negras del Pacífico colombiano. Revista La manzana de la discordia, v. 5, n. 2, p. 7-24, 2010.

[6] LOZANO LERMA, Betty Ruth et al. El feminismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas: aportes a un feminismo negro decolonial desde la experiencia de las mujeres negras del Pacífico colombiano. Revista La manzana de la discordia, v. 5, n. 2, p. 7-24, 2010.

[7] LOZANO LERMA, Betty Ruth et al. El feminismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas: aportes a un feminismo negro decolonial desde la experiencia de las mujeres negras del Pacífico colombiano. Revista La manzana de la discordia, v. 5, n. 2, p. 7-24, 2010

[8] FIGUEROA, Aurora Vergara; HURTADO, Katherine Arboleda. Feminismo afrodiaspórico. Una agenda emergente del feminismo negro en Colombia. universitas humanística, v. 78, n. 78, 2014.

[9] FIGUEROA, Aurora Vergara; HURTADO, Katherine Arboleda. Feminismo afrodiaspórico. Una agenda emergente del feminismo negro en Colombia. universitas humanística, v. 78, n. 78,


Veja outras notícias

.