Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Re-pensando proteção, autocuidado e segurança de mulheres defensoras de direitos humanos a partir da perspectiva feminista e de mulheres negras

Por Simone Cruz e Jelena Dordevic

Diante do momento político que estamos vivendo, marcado por tentativas de criminalização dos movimentos sociais, com o crescente número de mulheres defensoras de direitos humanos ameaçadas, agredidas e assassinadas no Brasil, vem aumentando a demanda pelo trabalho sobre autocuidado, segurança e proteção de ativistas, como também necessidade de aprofundamento desses debates.

Anna Haddad, em matéria publicada em 2018 no site de notícias e opiniões Huff Post Brasil, afirma que o debate em torno do tema do autocuidado está diretamente relacionado ao sentimento de insegurança política:

“… podemos observar que, quanto mais cresceu a turbulência política, cresceu também o interesse em autocuidado. A busca pelo termo no Google alcançou a maior alta em 5 anos nos Estados Unidos, um pouco antes das eleições de Donald Trump, no fim de 2016. O mesmo aconteceu no Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro: o maior pico de busca pelo termo acontece exatamente agora, no período em que estamos”.

 

Crédito: Freepik

Falar sobre segurança e autocuidado é falar sobre a rotina de cada ativista e necessidades de fortalecer as organizações nas suas capacidades de proteção coletiva. É também falar e refletir sobre as relações estabelecidas no movimento feminista e de mulheres negras.

Tendo isso em vista, reconhecemos que trabalhar práticas de autocuidado e segurança passa pelo olhar da sua dimensão interna e externa, individual e coletiva. Trabalhar dimensão interna significa refletir sobre as práticas de opressões internalizadas e reproduzidas dentro de nossos espaços da atuação política. Já a dimensão externa remete para o cenário político onde as forças contrárias ao ativismo feminista, a mulheres ativistas em sua diversidade, e também suas lutas operam com violência patriarcal.

O projeto ’’Eu sou, porque nós somos: Fortalecendo as estratégias coletivas de proteção e autocuidado para mulheres ativistas’’, coordenado pelas Organizações Não Governamentais (ONGs) Themis – Gênero e Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e Criola, com sede no Rio de Janeiro, foi elaborado logo após o assassinato brutal da Marielle Franco, foi pensado a partir de algumas preocupações fundamentais sobre o tema de segurança, proteção e autocuidado, principalmente às vulnerabilidades que as mulheres defensoras estão expostas no contexto da luta por direitos humanos. Ainda que, pensar em vulnerabilidades no contexto dos direitos humanos possa soar genérico, uma vez que é a suscetibilidade social que motiva a defesa desses direitos.

Duas consultoras do projeto conduziram, entre os meses de março e maio de 2019, nove entrevistas com defensoras de direitos humanos, com idades entre 29 e 69 anos, representantes de nove organizações ou coletivos. Cada entrevista durou em torno de uma hora e meia. Neste conjunto, há uma diversidade de ativistas em termos de: localização, orientação sexual, identidade de gênero, forma de atuação e área de ativismo. As entrevistas foram realizadas pessoalmente ou conduzidas por meios seguros de comunicação (Signal ou Jitsi). As entrevistadoras utilizaram um questionário de orientação durante o trabalho, sendo que, perguntas específicas, quando necessárias, foram feitas as entrevistadas. Após cada entrevista, as consultoras realizaram um levantamento dos temas que mais apareceram durante as conversas.

Para esta análise utilizamos, além do conteúdo das entrevistas individuais realizadas, através de um roteiro pré-elaborado, o relatório oriundo da reunião nacional das ativistas realizado em junho de 2019, que contou com a participação de 40 (quarenta) mulheres. Assim, as questões apresentadas neste artigo representam o pensamento de uma parcela significativa de mulheres ativistas do movimento feminista, figurado em suas diferentes atuações, seja de mulheres negras, trans, indígenas, acadêmicas, jovens, religiosas, urbanas e rurais sobre o tema do autocuidado, segurança e proteção de ativistas.

Considerando as diferentes lutas dos movimentos feministas, identificaremos no decorrer do texto como o autocuidado, segurança e proteção tem sido tratados, assim como analisaremos como se dá a intersecção de gênero e raça a partir do que foi exposto, pelas ativistas, tanto nas entrevistas individuais quanto na reunião nacional, apontando a importância do aprofundamento destas temáticas neste cenário.

A necessidade de buscar compreender um universo de subjetividades das ativistas feministas, em suas diferentes atuações e pertencimentos sociais, não nos permitiu experimentar novas metodologias de trabalho.
Alavancado por um contexto político e demandado pela necessidade de mudança de comportamento de atuação de ativistas, a reflexão sobre os conceitos de autocuidado, segurança e proteção deve se dar de forma articulada e acumulada com a agenda política dos diferentes segmentos dos movimentos feministas.

I – Autocuidado, Segurança e Proteção: conceitos em debate
Ainda que os movimentos feministas venham envidando esforços, há alguns anos, no sentido de tornar o cuidado e autocuidado parte da cultura dos movimentos ainda não há uma definição específica destes conceitos na perspectiva das ativistas. No entanto, a partir do trabalho já desenvolvido neste campo, dos quais podemos referenciar alguns neste artigo, podemos afirmar que estes conceitos vêm sendo construídos, inclusive através de questionamentos sobre os sentidos de falarmos sobre autocuidado no contexto dos movimentos sociais. Com base nisso identificamos diferentes percepções de ativistas feministas sobre o autocuidado as quais abordaremos aqui a partir de duas dimensões: interna e externa, individual e coletiva e que estão diretamente correlacionadas.

Do ponto de vista da dimensão interna e individual, o conceito de autocuidado na perspectiva das ativistas entrevistadas é vivenciado com contradições já que, percebendo a necessidade do cuidado de si, há um esforço de lidar com sentimentos de culpa gerado pela incapacidade individual de responder a uma demanda externa, que muitas vezes exige muito, como refere uma das ativistas:

“A importância que é tu parar, se ouvir, se escutar, se sentir, se perceber diante de algo que tu nunca imaginou passar e parece que tu não pode parar porque tudo depende de ti.(…)”.

A fala da ativista reflete a fala de outras mulheres que mencionaram sobre o cuidado, onde é possível dimensionarmos que o conceito de autocuidado individual está diretamente relacionado a liberdade. Ou quando o autocuidado é experienciado como algo familiar, como nos terreiros, como um cuidado espiritual acolhido por este espaço, como menciona a ativista NN: “No terreiro a gente tem aquela coisa do acolher, do receber, do cuidar, realmente é da escuta, o terreiro acolhe, o terreiro escuta, o terreiro orienta, o terreiro encaminha, então nós já estamos acostumadas a viver isso,é da (…) então essa coisa do cuidado, do autocuidado, do cuidar do outro, é do terreiro(…)”. Quando praticam o autocuidado estão tendo a ousadia de olhar para si mesmas sem se desconectar da comunidade e do ativismo. A necessidade do autocuidado vem do fato das ativistas estarem doentes e se manterem na luta.

A vivência do autocuidado, a partir de uma dimensão externa e coletiva, é partilhada a partir de relatos que remetem à ideia de uma autopreservação relacionada a fatores externos ocasionados por algo ameaçador, que foge do controle individual.Além da ameaça à vida, a prática do racismo em todos os seus níveis também é considerada uma ameaça perpetrada pelo Estado. Este tipo de ameaça vem aumentando e gerando a morte física, psicológica e a morte mais complicada que é a morte política. Na percepção e vivência das ativistas, principalmente das mulheres negras, quando em situação de risco de vida as opções oferecidas estão limitadas ao enfrentamento com as ameaças locais, ou a saída e afastamentodo ativismo, o que significa tirá-las do convívio (ativismo).

Ao focarmos nas relações raciais,as ativistas negras trazem uma lógica de cuidado e autocuidado que vai para além do cuidado pessoal, trazendo o cuidado nas relações entre ativistas como elemento indispensável,um pensar sobre a forma como vem sendo construída e mantida essa relação, e também de um cuidado que é basicamente a necessidade ter uma estrutura de vida, ou seja, garantia de uma estabilidade (segurança) física e emocional.

Para as ativistas negras, faz sentido pensar o autocuidado na relação com o ativismo. Especialmente,para o reconhecimento de onde estão integradas e o que estão fazendo, como se vêem e cuidam de si na perspectiva do “estar” na luta e abordar questões importantes que,muitas vezes,não são priorizadas, como as práticas racistas vivenciadas dentro do próprio ativismo e entre ativistas; por isso, chamam a atenção em suas falas sobre a necessidade de olharmos para as violências individuais, o racismo e as violência dentro do próprio ativismo.
As questões estruturais trazidas nestes depoimentos falam da necessidade da descolonização radical do corpo, e o autocuidado é uma grande estratégia de ativismo nesse sentido, pois enfrenta a lógica do sistema quando nos faz olhar para os processos na relação com o outro.

Na lógica das ativistas, quando tudo as afeta, deve-se lembrar que o afetar sempre é relacional. Então, ao pensar na descolonização, deve-se pensar que a dimensão de cuidado, como,por exemplo, nas comunidades indígenas está relacionada ao cuidado para com os outros indivíduos da comunidade – assim como para com os animais e plantas; quanto mais se entra nesse universo do conceito de individualidade em contraponto ao conceito de singularização, que seria olhar para as forças que se atravessam em relação “com” a outra- uma vez que esse afetar que adoece é em uma relação com alguém – percebe-se que o autocuidado deve ser pensado como uma relação na qual é importante se investir.

O conceito de autocuidado e cuidado entre ativistas é abordado de forma integrada. Na reflexão do feminismo o ser mulher não se constitui, numa sociedade patriarcal como a nossa, como um ser com autonomia, mas sim existente em função do outro. A mulher existe, então, para cuidar do homem, das crianças, do espaço e para outros usos. Ela não existe como ser autônomo. Situação essa que o racismo coloca e agrava, pois se a mulher existe para cuidar dos outros, esse cuidado, quando é racializado, gera uma maior humilhação e sujeição.
Assim, o autocuidado é entendido como um espaço de afirmação da existência de si, apesar da existência do outro, que não está relacionado com o individualismo capitalista mercantilizador, da competição, da ausência de relação social; aqui, o autocuidado é compreendido na autonomia e na relação com os outros seres. A autonomia também se constitui na reciprocidade e na solidariedade.

Algumas entrevistadas, embora com anos de experiência deativismo, muitas vezes expressaram uma impossibilidade de “ser”, como se não pudesse pensar em si, pois precisava pensar no outro. Nestas situações, é grande a importância de formação de vínculos para sobreviver e combater. Os vínculos que uma mulher negra têm com outra são diferentes do que pode se estabelecer com uma mulher branca, e esses vínculos são fundamentais para o enfrentamento, pois, na medida em que existe o reconhecimento de iguais neste campo, a luta se fortalece e o enfrentamento é se visto com mais possibilidades.Deve-se construir o lugar do autocuidado da mesma forma que se constroem ideias de enfrentamento, como, por exemplo o “Black is Beautiful” foi criado na década de 60/70 do século passado com forma de afirmar um sujeito pessoal e político para enfrentar o racismo.

Para outra ativista, há uma necessidade de radicalizar a discussão nesse espaço, ou seja, buscar a segurança para o coletivo na raiz do movimento feminista. Devem-se buscar os efeitos do processo de colonização do corpo, anteriormente citados, pois o nível de violência é grande, a violência que faz com que uma mulher negra, mesmo que esteja vestida de branco em um hospital, não seja reconhecida como médica em função de sua cor; e, pior, muitas vezes essa pessoa que pratica a violência vive situações de violência semelhantes, pois também é negra. Foi citado o exemplo de Deise Nunes, a primeira miss Brasil negra que fez tratamento para clarear a pele, aplicando no próprio corpo a violência que sofre, se autoviolentando. Deve-se “ousar” cuidar de si sem abrir mão do coletivo, o que é hoje um grande desafio.

Sobre a violência entre ativistas, é identificada uma “romantização” do movimento feminista, como um lugar de muitos encontros e descoberta de identidades, no entanto, se observa que a violência da sociedade também acontece nesses espaços, levadas pelas próprias ativistas. Na verdade, deve-se constantemente buscar, de forma coletiva, uma maneira para resgatar e fortalecer algumas relações de confiança pessoais, e no movimento, através do reconhecimento das diversas formas do movimento. Suas loucuras a acompanham para dentro do movimento. Como não ver a outra como inimiga, ou como competidora? Deve-se procurar reconhecer essas formas de violência, em especial o prejuízo que o racismo e o machismo nos trouxeram. A partir disso, deve-se buscar construir estratégias coletivas para combater estes padrões de ativismo, para reconhecer a dimensão humana mesmo quando a tendência é ver a ativista feminista ou como heroína ou como uma vilã, que faz o que faz pelo poder.

II – Segurança de mulheres ativistas

“Segurança é você ter a liberdade de expressar a sua fé, segurança é você poder ir e vir sem ser constrangida por um policial, sem ser constrangida por uma pessoa da loja, isso é segurança. Segurança nunca foi exercitada a nosso favor, a nosso serviço, segurança é você ter uma coletividade que se acontecer alguma coisa com você todo mundo vai gritar, vai sentir falta, então eu tenho que caminhar um pouco pra pensar o que é segurança mesmo. O que é segurança pras nossas crianças? É ter um banho, a comida a cama? é saber que ele cai e tem ali a mãe, a vó, a tia que vai socorrer, isso é segurança pra criança”. V.

Segurança como um direito é inatingível para muitos. A deterioração do tecido social gerado pelo avanço do modelo econômico neoliberal, a herança de impunidade, o modelo de segurança baseado nas intervenções policiais, justificado com o pretexto de combate ao tráfico de drogas tem servido unicamente para oprimir e controlar a população.

O contexto em que esta análise ocorre é o aumento da violência contra as mulheres defensoras dos direitos humanos, particularmente mulheres negras de áreas urbanas e rurais bem como aquelas que se identificam como lésbicas, bissexuais e transgêneros, e trabalham em diversas áreas de direitos humanos: direitos sexuais e reprodutivos; participação política; empoderamento econômico; direitos da terra e territórios; direito das mulheres; direitos LGBTI; democratização da comunicação bem como a luta contra a militarização das favelas e periferias.
Para entender que tipo de proteção, cuidado e segurança são necessários às mulheres defensoras de direitos humanos, partiu-se da importância de entender primeiro como mulheres ativistas compreendem a segurança. O que segurança significa para cada uma delas?Quais fatores contribuem para o aumento dos riscos que podem resultar em ataques diretos contra elas? Além disso, como nós podemos conceber segurança tendo gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero como um ponto de partida para a análise? Até que ponto gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero precisam ser considerados como fatores determinantes de riscos enfrentados pelas defensoras? Quais são todas as dinâmicas que operam por trás da violência contra as mulheres defensoras dos direitos humanos a partir da perspectiva de raça e gênero?

Também se buscou saber se há uma diferença entre proteção e segurança e, finalmente, quais riscos atuais e eminentes e ameaças enfrentadas pelas organizações feministas bem como as organizações de mulheres negras.

Por que precisamos falar sobre segurança? O que isso tem a ver com a nossa organização política?

À medida que as defensoras asseguravam o sucesso de seus projetos políticos, os conservadores estavam se organizando sistematicamente para suprimir a sociedade civil. Prisões arbitrárias; assassinatos; violência sexual usada contra mulheres defensoras; e difamação são apenas algumas das estratégias usadas pelo estado assim como atores não-estatais para restringir e limitar a influência daquelas que lideram a transformação social.
Em resposta, reconhecendo o impacto da opressão e violência sistêmica em suas subjetividades e também nas formas de organização, defensoras começaram a desenvolver estratégias de segurança e proteção. Em diferentes lugares, era chamado de diferentes formas, mas independentemente de qual o nome, resiliência, segurança, bem-estar, sustentabilidade era sua essência.

Em 2006, o Kindred Healing Justice Collective, uma rede de curandeiras/ political healers, praticantes de saúde e organizadoras do sudeste dos EUA, começaram a usar o termo justiça da cura/healing justice como um conceito para identificar como podemos holisticamente responder e intervir sobre traumas e violências geracionais, apresentando práticas individuais e coletivas que podem transformar a opressão em nossos corpos e vidas coletivamente. A partir das histórias das organizadoras negras do Sul, indígenas, mulheres de cor, LGBTQI e aliados, que conectaram realidade do trauma geracional com as histórias contínuas da escravidão, genocídio e privação dos direitos econômicos com base na economia do trabalho escravo e na colonização, a justiça da cura passa a elevar a resiliência e práticas de sobrevivência que centralizam a segurança coletiva e emocional, psicológica, espiritual, bem-estar ambiental e mental das comunidades.

Aproximadamente ao mesmo tempo, em círculos próximos ao Fundo de Ação Urgente pelos Direitos Humanos da Mulher, em 2007, as ativistas começaram a olhar para o autocuidado; sustentabilidade; segurança integral. Nos anos que se seguiram, as organizadoras começaram a falar sobre segurança holística, através da qual se reconheceu que o bem-estar psicológico/psicossocial, a segurança física e a digital são componentes fundamentais de fortes movimentos e organizações.

O autocuidado como estratégia política do movimento feminista e de mulheres negras

Cárdenas e Méndez focalizam no artigo intitulado: “autocuidado como estratégia política (2017) a experiência da IM Defensoras, uma iniciativa criada em 2010 com o objetivo criar estratégias de proteção, autocuidado e segurança para mulheres de Honduras, Guatemala, El Salvador, México e Nicarágua frente a intensidade da violação dos direitos humanos. Neste artigo, as autoras afirmam que o autocuidado garante, para além da sustentabilidade dos movimentos sociais, uma postura ético-política que envolve a análise das práticas de trabalho e das relações estabelecidas em nível pessoal e coletivo.

Em 2009, nascia o Fundo de Ação Urgente para Ação – América Latina e Caribe (FAU-ALC), sediado em Bogotá, Colômbia, proveniente do Fundo de mesmo nome nos Estados Unidos. O FAU busca fortalecer as ativistas, e os movimentos sociais das quais fazem parte, com apoios de respostas rápidas diante das lutas, injustiças e desigualdades vivenciadas pelas defensoras frente situações de riscos vivenciadas por estas, colocando a proteção integral e o cuidado como centro de seu trabalho, enquanto cultura organizacional. Neste aspecto o FAU, a partir da edição do Livro “Que sentido tem a revolução se não podemos dançar?” (2006) criou um programa específico de Ativismo Sustentável que, mediante processos de formação, promove espaços de reflexão e fortalece capacidades e potencialidades buscando constituir uma cultura de prevenção que transforme as práticas das ativistas em condições de bem estar, saúde física e emocional. Nesta linha, a concepção do cuidado de si e coletivo para FAU são inseparáveis tratando-o como corpo-território, corpo físico e corpo virtual como partes indivisíveis deste cuidado.

A frase: “Qual é o sentido da revolução se não podemos dançar?” se tornou um marco no movimento feminista no que se refere ao autocuidado, tanto que Cárdenas e Mendés (2017) assumem que:

“…a frase dá título a um dos livros que inspiraram o desenvolvimento da estratégia de autocuidado na IM-Defensoras, é atribuída à anarquista Emma Goldman, que, diante da censura de um de seus companheiros pela dança “inadequada”, apontou: “Se não se pode dançar, sua revolução não me interessa”. Com esta frase, reivindicamos o direito das defensoras ao gozo, prazer e usufruto de seu próprio corpo.”

No Brasil, em janeiro de 2014, foi criado o Coletivo Feminista de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas por 7 mulheres feministas e ativistas que, reunidas na casa de uma delas em Cabo Frio durante três dias,conversaram sobre si mesmas e sobre suas vivencias e sentimentos no ativismo, com o objetivo de abrir espaço de intercâmbio, experimentação e reflexão sobre o ativismo e as práticas de organização feminista e mobilização social, de autocuidado, assim como de cuidado umas com as outras (reciprocidade do cuidado). A ideia de criar um Coletivo com esse objetivo surgiu a partir da situação crítica vivida por uma feminista, organizadora da Marcha das Vadias no Rio de Janeiro no mesmo ano. Após a realização da Marcha, ela ficou exposta a uma série de ameaças misóginas e fundamentalistas, foi investigada pela polícia, viveu uma situação de alta vulnerabilidade que afetou sua saúde física e mental. Com a intenção de aprofundar a reflexão sobre o que estava acontecendo com cada uma das ativistas, com seus corpos, corações e mentes que o Coletivo foi pensado, conforme uma de suas integrantes reflete:

“Olhando para o “nosso mundo”, percebemos que muitas de nós, depois de anos vivendo e trabalhando como ativistas, sentimo-nos exaustas, desiludidas, não conectadas, sem saber o significado de tudo isso, enfim, cansadas! Algumas de nós, já decidiram deixar os espaços onde estávamos atuando, outras ficaram doentes, algumas já disseram “não tenho mais nada para dar, eu preciso cuidar de mim mesma para ser capaz de continuar nossa luta feminista e antirracista”, e outras não encontram formas de se fortalecer. Estas histórias que já ouvimos de muitas ativistas/feministas com as quais partilhamos espaços de organização e articulação do movimento nos colocam em “xeque”. Estas são questões que têm incomodado, desacomodado e convocado várias ativistas do movimento de mulheres e feminista a mudanças, tanto do ponto de vista pessoal, quanto da militância!!”

A participação da Psicóloga Maria Lucia da Silva, do Instituto AMMA Psique e Negritude, no evento Diálogo Mulheres em Movimento: Direitos e Novos Rumos, na Cidade do Rio de Janeiro, em 2017 realizado pelo Fundo Social Elas produziu reflexões em torno dos temas de autocuidado e segurança, os quais a mesma afirma que ambos estão diretamente relacionados, envolvendo pensamentos e ações que estão ligados à cura. Neste contexto a fala da ativista abordou o tema mencionando como o racismo deve ser enfrentado pelo movimento feminista na perspectiva do cuidado e segurança:

“Como falamos de um movimento que é diverso, para que o tema do cuidado e segurança das ativistas ganhe efetividade, é necessário compreender que o racismo não é um tema somente das mulheres negras e indígenas, e enfrentar o racismo implica em abrir mãos dos privilégios preservados pelo racismo, só assim poderemos trabalhar, de fato, como coletivo”.

Consoante com a afirmação de Anna Haddad (2018), sobre o crescimento do interesse como tema do autocuidado relacionado ao momento de crise política no país, a jornalista Helena Bertho, da revista Marie Claire, produziu matéria em janeiro de 2019 sob o título: “Autocuidado: a próxima fronteira do feminismo (e que deveria ser estendida a todas as mulheres)”. Nesta matéria, a jornalista conta de suas conversas com ativistas que tem atuado em torno do tema, com o objetivo de compreender porque a palavra “autocuidado” se tornou tão urgente entre as mulheres negras e ativistas feministas no país, identificando que a exigência das ativistas pelo autocuidado é critério para a manutenção do enfrentamento as lutas no contexto político atual que se configura cada vez menos tolerante e mais extremista.

Ao relacionar o tema do cuidado e autocuidado com a saúde podemos afirmar que não se trata de um assunto atual no movimento feminista e de mulheres negras. O comprometimento com a vida, por conta dos danos causados pela escravidão devido as diferenças culturais da diáspora, a violência sexual, a violência psicológica e física, a perda dos filhos, situações até hoje vivenciadas pelas mulheres negras em nosso país sempre foram objeto de atenção do movimento de mulheres negras. O Livro da Saúde das Mulheres Negras: Nossos Passos Vêm de Longe (2000) organizado pela médica e ativista Jurema Werneck (et al), já apontava para a necessidade dasmulheres negras falarem de seu lugar sobre saúde pela ótica do autocuidado.

“Saúde aqui é mais que um pretexto. É um lugar privilegiado de explicitação do que somos. Para nós, saúde vai além da oposição à doença e aproxima-se do conceito de bem-estar geral, físico, mental e psicossocial, definido pela Organização Mundial de Saúde. Num passo adiante, propomos uma definição de saúde que inclui a busca de equilíbrio dinâmico com a vida e seus elementos, seres vivos e morto, humanos, animais, plantas, minerais. E essa busca traduz-se numa responsabilidade individual e coletiva. Responsabilidade que pode ser lida também como poder de realização, como podem significar os termos axé (do ioruba) e muntu (do banto)…discussões sobre doenças e desequilíbrios que nos afetam; e nossa capacidade de agir e transformar.

A propósito, falar sobre a própria voz tem sido instrumento do cuidado para as mulheres negras há anos. Se olhar, se observar e se admirar é construto do cuidado individual e coletivo.

Conclusão

Desde a vitória do candidato de extrema direita nas últimas eleições presidenciais, os ataques contra agenda de direitos humanos têm sido inúmeros. Isso impactou diretamente as organizações e movimentos da sociedade civil, à medida que a hostilidade ao ativismo e aos ativistas aumentou. Ameaças contra grupos específicos de defensoras, como feministas, pessoas LGBTI, mulheres negras em sua diversidade, têm sido cada vez mais evidentes. Trabalhadores e trabalhadoras rurais, lideranças comunitárias, movimentos sociais, indígenas, quilombolas, defensores dos direitos humanos e organizações que apoiam os processos de redistribuição de terras continuam altamente vulneráveis no contexto atual.

Após o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista em março de 2018, segurança e proteção tornaram-se áreas de preocupação para a maioria das organizações de direitos humanos e movimentos sociais no Brasil. A impunidade em que essa violência política aconteceu expôs a falta de preparação da sociedade civil para lidar com riscos eminentes do trabalho em direitos humanos no atual contexto político. Poucos meses após o assassinato de Marielle Franco, o congressista de esquerda Jean Wyllys, a candidata política Marcia Tiburi, a professora e ativista feminista Débora Diniz deixam o país por temer por sua segurança.

No contexto atual do Brasil, é muito importante não apenas observar a segurança cotidiana dos defensores, mas também a sustentabilidade e a proteção a longo prazo. Um elemento importante de proteção é a resiliência pessoal e organizacional. A resiliência pode ser construída por muitos elementos – incluindo sustentabilidade financeira, fortalecimento institucional, mas também desenvolvimento pessoal e bem-estar/autocuidado.
Desigualdade de gênero e racismo são problemas estruturais na sociedade Brasileira. Sendo fontes de opressão e violência, limitam as possibilidades de mulheres usufruírem seus direitos. Nossa proposta reconhece que a desigualdade de gênero e o racismo geralmente não são vistos ou compreendidos suficientemente quando se pensa em violência contra defensores de direitos humanos. Como consequência, a violência enfrentada pelas defensoras permanece invisível, inexplicável e sem respostas adequadas.

Assim, como elemento central de conclusão, estamos trazendo um apelo para a necessidade de desenvolvimento de mecanismos de proteção, que respondam à maneira como a desigualdade de gênero e o racismo operam para impedir que as mulheres reivindiquem seus direitos humanos, vivam livres de violência e participem plenamente dos processos democráticos. Em especial, pensamos que as organizações, fundações, institutos e indivíduos que apoiam defensores de direitos humanos considerem os aspectos específicos que marcam cada contexto social, como suas particularidades regionais e territoriais, raça e gênero, etnias, e acesso a recursos públicos de justiça e segurança.

Também há que se considerar que este projeto desenvolvido pela Themis- Gênero Justiça e Direitos Humanos e Criola -Organização de Mulheres Negras revela que os conceitos de “defensores de direitos humanos” não são universais em seu significado. Ser uma defensora de direitos das mulheres em uma comunidade, e ser perseguida por isto em microesferas de ativismo também é ser um/a “defensor de direitos humanos”. A distância que separa a ameaça, e mesmo execução, de pessoas com perfis públicos, das ativistas que estão cotidianamente lutando por mudança social pode criar uma funcionalidade torta na concepção e execução de programas de proteção de defensores ao privilegiar um perfil de ativistas (masculino, público) e tornar invisível outros/as (mulheres, negras, indígenas, jovens), e sua atuação cotidiana.

Sobre as autoras

Simone Cruz é psicóloga, mestra em Saúde Coletiva, integrante da Associação Cultural de Mulheres Negras/RS e da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB. Uma das fundadoras do Coletivo Feminista de Autocuidado. Integrante da Junta Diretiva do Fundo de Ação Urgente para a América Latina.

Jelena Dordevic é feminista ativista, natural da Sérvia, vivendo no Brasil nos últimos 7 anos, assessorando diversas organizações de direitos humanos e feministas nas questões de proteção e cuidado de ativistas. É uma das fundadoras do Coletivo Feminista de Autocuidado. Trabalhou para prevenir violência contra as mulheres e o tráfico de mulheres na região dos Bálcãs. Co-autora do livro: “Qual sentido tem a revolução se não podemos dançar’’? Integrou o Conselho Diretor de Fundo de Ação Urgente pelos Direitos Humanos das Mulheres. Nos últimos 12 anos atua para melhorar a prática do autocuidado e proteção de defensores e defensoras de direitos humanos, ao redor do mundo. Tem Mestrado em Estudos sobre Migração, obtido na Universidade de Sussex, Inglaterra.

Referências bibliográficas

Mapeando el cuerpo-território: Guía Metodológica para Mujeres que defienden sus territórios. Colectivo Miradas Críticas Del Território desde El Feminismo, Quito/Equador, 2017.

O movimento de mulheres negras: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. Silva,Joselina; Pereira, Amauri Mendes (Org.), Belo Horizonte/MG, (2014).

Mulheres Negras na primeira pessoa (Org.) Werneck, Jurema; Iraci, Nilza; Cruz, Simone (2012).

Outros Tipos de Sonhos: Organizações de Mulheres Negras e Políticas de Transformação. Sudbury, Julia. São Paulo/SP, Summus, 2003.

O Livro da Saúde das Mulheres Negras: Nossos Passos Vêm de Longe. Werneck, Jurema; Mendonça, Maisa; White, Evelyn C. (Org.) Rio de Janeiro, Pallas: Criola, (2000).

Que Sentido Tem a Revolução Se Não Podemos Dançar?, Fundo de Ação Urgente pelos Direitos Humanos das Mulheres, Jane Barry e Jelena Djordjevic, EUA, (2007).

CÁRDENAS, Ana María Hernández, MÉNDEZ, Nallely Guadalupe Tello. Autocuidado como Estratégia Política. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos – Edição 26, 2017. Disponível em: https://sur.conectas.org/o-autocuidado-como-estrategia-politica/

Fundo de Ação Urgente – América Latina e Caribe. Disponível em: https://fondoaccionurgente.org.co/
Documentos internos. Coletivo Feminista de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas.
Autocuidado: a próxima fronteira do feminismo (e que deveria ser estendida a todas as mulheres). Helena Bertho. Disponível em: https://www.geledes.org.br/autocuidado-a-proxima-fronteira-do-feminismo-e-que-deveria-ser-estendida-a-todas-as-mulheres/


Veja outras notícias

.