Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Entrevista: Simone Mainieri Paulon, coordenadora da Clínica Feminista da UFRGS

Crédito: arquivo pessoal

Tema em evidência neste mês, permeado por ações da campanha Setembro Amarelo, a saúde mental tem recebido especial atenção da Themis desde o início da pandemia de coronavírus. Isso é possível graças à parceria estabelecida com a Clínica Feminista da UFRGS, um projeto de extensão idealizado em dezembro de 2019 por docentes de Psicologia da universidade. A partir de demandas da Themis e do Movimento Olga Benário, que coordena a casa de acolhimento Mirabal, a clínica passou a oferecer ajuda psicológica para mulheres que ficaram em situações mais vulneráveis devido à pandemia, como as Promotoras Legais Populares (PLPs). Nesta entrevista, a professora Simone Paulon, uma das coordenadoras da iniciativa, conta como a Themis inspirou a atuação desenvolvida pela Clínica Feminista e a necessidade da produção de alternativas às demandas de saúde mental das mulheres, que as apoiem nas funções que exercem junto às comunidades (PLPs), nos processos de denúncia e de cuidado de si.

 

Como funciona a Clínica Feminista da UFRGS?
É um projeto de extensão que operacionaliza o que entendemos como função social da universidade, já que surgiu de uma demanda do movimento social, a partir da Themis, das Promotoras Legais Populares (PLPs), e da Mirabal. Como universidade pública, temos uma posição privilegiada para colocar um conhecimento a serviço da comunidade que o demandou, articulando ainda a extensão (que presta atendimento clínico), o ensino (promovendo cursos de formação baseados nesta experiência), e a pesquisa, pois a equipe conta com alunas de pós-graduação que estudam relações de gênero e também estão nos ajudando a investigar os efeitos do que estamos produzindo neste processo. Estamos construindo esse serviço juntas: a universidade, a organização não governamental e a comunidade. As reuniões de equipe são semanais e bem interdisciplinares, pois todas entidades participam, pensando encaminhamentos, discutindo os casos e aprendendo a lidar com as dificuldades deste contexto, mas também inventando saídas a ele.

 

Como a Themis inspirou a atuação da Clínica Feminista?
A ideia inicial da Clínica Feminista era fazer formação das líderes comunitárias para acolhimento em saúde mental. Aí, a pandemia nos atropelou e começamos a atender, mas muito a partir do que nos era demandado. E nos inspiramos na potência inventiva que as mulheres vão criando em cima do que vai lhes sendo retirado. Nós temos uma capacidade de invenção de vida que é muito feminina, e isso se apresenta também na forma do enfrentamento cotidiano das adversidades. Ninguém melhor que as mulheres negras para mostrar que, junto às adversidades, é possível criar potências, redes e alternativas de solidariedade. Em um Estado que abandonou as mulheres, é importante denunciarmos e fazermos o movimento necessário para cobrar o que está sendo roubado, violentado, e que mais radicalmente aparece no corpo da mulher negra. Mas a denúncia não pode nos imobilizar. E a provocação da Themis foi crucial nesse sentido. Ao nos indagar: “O que a academia, com seus estudos de gênero e saúde mental, tem a oferecer em um contexto de crise?”, a Themis nos deu uma linha: aqui nós podemos ajudar.

 

Como conciliar a ação com a denúncia da precarização do Estado?
O projeto da Clínica Feminista surgiu em um momento em que as mulheres estão se organizando para cuidarem de uma demanda sobre a qual as políticas públicas estão deixando um vácuo. A organização de redes a partir da solidariedade é um exercício que as mulheres negras nos ensinaram. Mas isso não pode, de nenhuma forma, suplantar o dever do Estado. É dele a obrigação de uma rede de atenção psicossocial. Estamos inventando formas criativas de fazer as coisas que o Estado deveria fazer e não faz, e é um degrauzinho apenas na atenção às necessidades dessas mulheres. Elas precisam de postos de saúde, de serviços de emergência, de possibilidades de geração de renda, de acesso ao auxílio emergencial. A falta desses serviços gera sobrecarga nessas mulheres e nos serviços que atendem a elas.

Quais são os próximos passos do projeto?
Um curso para que as PLPs possam identificar as demandas de saúde mental, porque há muito preconceito em torno disso. A intenção não é que as PLPs atuem como psicólogas, mas que percam o medo ou estigmas que o tema do sofrimento psíquico carrega. A ideia é resgatarmos a proposta inicial do projeto – com formação de lideranças comunitárias, a fim de que elas desenvolvam instrumentos e sensibilidade para se aproximarem das mulheres mais vulneráveis e poderem identificar um sofrimento circunstancial, um momento de tristeza pelas inúmeras perdas que estão vivendo, de um potencial adoecimento psíquico que pode desencadear algo mais grave. A pandemia ajuda a questionar uma lógica da saúde mental como um adoecimento individual, uma patologização da vida cotidiana que é muito ruim. Hoje sabemos que não adianta uma pessoa isolada cuidar de sua saúde se todos a sua volta, sua cidade, seu país adoecerem e ela não puder sair na rua. Este pode ser um bom aprendizado que tiramos desta crise mundial, que não é só sanitária ou econômica, é uma crise de valores também. As imensas desigualdades sociais, o individualismo, o consumismo, estes valores típicos do capitalismo estão em xeque com o vírus. Se não aprendermos a cuidar uns dos outros, a cuidar do planeta e a melhorar as condições de vida de todos, ninguém terá saúde, não haverá vida possível a ninguém. Isto a ajuda a entender que toda saúde é coletiva. A única alternativa que vemos para isso é formação de redes afetivas nos territórios e junto aos serviços. 

 

O aumento da violência doméstica e dos feminicídios é um indicativo desse abandono do Estado?
O aumento de feminicídio e violência doméstica na pandemia não é um efeito exclusivo do confinamento em casa, mas porque as pessoas estão em casa sem recursos, e os serviços que elas tinham para ajudar na saúde mental estão sucateados. As redes de atenção psicossocial, que já eram aquém das necessidades da população e do preconizado pelo SUS, desde o golpe de 2016, vêm sendo sistematicamente desestruturadas pelos gestores públicos e tende a piorar com a violência maior que foi a aprovação da Emenda Constitucional 95, congelando os investimentos em saúde e educação por 20 anos no país. O governo municipal, no caso de Porto Alegre, por exemplo, cometeu a irresponsabilidade de acabar com os núcleos de apoio à saúde da família – NASF – que davam todo o suporte indispensável para que as equipes de unidades básicas atendessem situações de sofrimento psíquico antes de se agravarem e virarem emergências psiquiátricas. As pessoas estão em casa sofrendo o efeito da perda de acesso a direitos. A culpa do feminicídio não é da pandemia em si, é do Estado que reduz investimentos nas políticas sociais e não oferece suporte mínimo para as pessoas não adoecerem e enlouquecerem. A gente não pode colocar a conta só no vírus. Essas alternativas não vão prescindir de continuar cobrando o que o Estado deixa a descoberto. É preciso seguirmos produzindo alternativas coletivas, como estamos  fazendo na Clínica Feminista com a Themis e a Mirabal, e continuar denunciando a violência de um estado que retira direitos essenciais em meio à maior crise mundial deste século.  Esta semana fizemos um de nossos grupos online com mulheres da Mirabal à luz de velas e quase sem bateria nos celulares, pois a prefeitura mandou cortar a luz da Casa, que é um imóvel do Estado, sem função social há anos. Há um limite intransponível do que podemos fazer quando o estado não cumpre suas funções. Saúde Mental não pode ser só falar de setembro amarelo e deixar as pessoas sem condições mínimas de morar, trabalhar, se moverem e se alimentarem. Como diziam os Titãs, a gente precisa “comida, diversão e arte”!


Veja outras notícias

.