Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Themis opina pelo pedido de prisão preventiva no caso da babá Raiana

Crédito: TV Globo, reprodução

Relatos de agressão, cárcere privado para fins de trabalho, falta de alimentos e água e celular confiscado são fatores que levam o Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA) a trabalhar com a hipótese de trabalho análogo à escravidão no caso da babá Raiana Ribeiro, 25 anos. A Themis apoia a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) e opina pelo pedido de prisão preventiva da empregadora. A FENATRAD e órgãos fiscalizadores do trabalho no país realizaram live sobre o enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão (16.09.2021).

“A trabalhadora Raiana ficou confinada dentro de um apartamento, trancada, impossibilitada de sair. Teve seus bens pessoais tomados pela empregadora, como, por exemplo, o celular e algum dinheiro que carregava com ela. Além disso, não houve a possibilidade de ela se comunicar nem pelo interfone do apartamento. Ela ficou completamente enjaulada, sem comunicação, trancada para fins de trabalho, sofrendo inclusive violência física. Então, esses relatos se configuram, sim, com a hipótese de trabalho escravo na modalidade de trabalho forçado, porque o Artigo 149 do Código Penal prevê algumas hipóteses de trabalho escravo, como trabalho degradante, em jornada exaustiva, forçado e a servidão por dívida”, explica a Procuradora do Trabalho Maria Manuella Britto Gedeon do Amaral.

Raiana pulou do terceiro andar de um prédio em Salvador (BA), em 25 de agosto, para fugir das agressões da empresária Melina Esteves França, investigada por violência doméstica contra outras 11 ex-funcionárias. Raiana era responsável pelo cuidado das trigêmeas da empregadora – as crianças têm um ano e nove meses. Horas antes de pular, imagens internas do apartamento mostram que a babá foi agredida por Melina. 

Manuella, que também integra o Grupo de Estudo Escravidão, Gênero e Raça, do MPT, explica que o órgão instaurou inquérito civil público para apurar o caso. Além de autos de infração, multas administrativas e ajuizamento de indenização por dano moral, na esfera criminal Melina pode ter a prisão decretada, já que o Artigo 149 do Código Penal prevê pena de dois a oito anos de reclusão para quem mantém trabalhador em condição análoga à de escravo. 

A defesa sustenta que Melina tem transtorno psicológico diagnosticado como borderline, caracterizado por mudanças rápidas de humor, e não estava em tratamento. Já para Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), o desfecho do caso passa pela prisão preventiva da empregadora:

“As variações de humor dessa ‘cidadã’ (Melina) só atingem as trabalhadoras da casa dela, a vizinhança nunca foi maltratada por ela, nunca foi desrespeitada nem agredida por ela. Então, significa que os distúrbios desta senhora são seletivos, e aí, nós da Fenatrad e do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Estado da Bahia entendemos que a Justiça tem de ser feita. Não podemos aceitar que casos como esse continuem acontecendo, e a empregadora fique impune. Esperamos Justiça, para que isso não venha a acontecer com outras trabalhadoras domésticas e outros empregadores, porque a gente sabe que, infelizmente, a impunidade estimula a criminalidade. Quem faz sabe que vai ficar impune, infelizmente”.

Casos como o de Raiana não são fáceis de se fiscalizar, explica a Procuradora do Trabalho, uma vez que o trabalho doméstico é desenvolvido no âmbito de uma residência, protegida, constitucionalmente, pela inviolabilidade do domicílio: “É muito difícil pela peculiaridade do trabalho, considerando que aquela trabalhadora não se encontra numa empresa, numa coletividade de trabalhadores, com colegas de trabalho presenciando os fatos. Elas, geralmente, se encontram só, trabalhando sozinha na residência, muitas vezes ela é a única trabalhadora. Os casos, até chegaram à auditoria fiscal do trabalho, demoram mais”.

Para Luiza, o caso Raiana mostra que a classe dominante da sociedade brasileira mantém a mentalidade escravocrata, na qual as trabalhadoras domésticas – por serem classe dominada, composta na maioria das vezes por pessoas pobres, periféricas e negras, analfabetas ou semianalfabetas -, são consideradas pessoas inferiores.

“Elas vêm a nós como se fôssemos propriedade delas. A sociedade brasileira evoluiu, entre aspas, em tudo, menos na questão de respeitar as pessoas que são desprovidas de políticas públicas, sociais, de direitos (…) Nós continuamos vítimas do racismo institucional, do proconceito, da discriminação e da retirada de direitos. Os direitos humanos não são respeitados quando se trata de pessoas pobres, negras, menos favorecidas. A sociedade brasileira continua doente, com a mentalidade do poderio, do patriarcado. A sociedade precisa evoluir, humanamente falando”, sustenta a sindicalista. 

Para a Themis, há demonstração inequívoca de indícios de autoria dos crimes praticados pela empregadora. Os fatos são graves e indicam frieza, com suficiente demonstração do abalo na ordem pública. Tais requisitos justificam o pedido de prisão preventiva, que deve ser solicitado ainda no inquérito policial.

Confira trechos da entrevista com Maria Manuella Britto Gedeon do Amaral, Procuradora do Trabalho

O caso Raiana se enquadra em uma situação de trabalho análogo à escravidão?
Nós temos trabalhado com a hipótese de trabalho análogo à escravidão, considerado que o relato é de que houve um cárcere privado para fins de trabalho. Ou seja, a trabalhadora Raiana ficou confinada dentro de um apartamento, trancada, impossibilitada de sair. Teve seus bens pessoais tomados pela empregadora, como, por exemplo, o celular e algum dinheiro que carregava com ela. Ela ficou completamente enjaulada, sem comunicação, trancada para fins de trabalho, sofrendo inclusive violência física. Esses relatos se configuram, sim, com a hipótese de trabalho escravo na modalidade de trabalho forçado, porque o Artigo 149 do Código Penal prevê algumas hipóteses de trabalho escravo, como trabalho degradante, em jornada exaustiva, forçado e a servidão por dívida.

 

Embora não estejas mais à frente do caso Raiana, o que a sociedade e, principalmente, as trabalhadoras domésticas podem esperar como desfecho? Qual o recado deste caso à sociedade?
O Ministério Público do Trabalho instaurou um inquérito civil público para apurar este caso. Estamos trabalhando em parceria com a auditoria fiscal do trabalho e já ouvimos algumas testemunhas, algumas vítimas, e ouvimos Raiana. As irregularidades que já foram detectadas, inclusive, logo no primeiro depoimento da empregadora Melina, como ausência de assinatura de carteira, jornada exaustiva, ausência de um acordo sobre repouso semanal remunerado, além de todas as outras irregularidades referentes ao trabalho análogo à escravidão, faz gerar autos de infração, multas administrativas, além do ajuizamente de ação civil pública para requerer indenizações por dano moral, além de condenação da empregadora em obrigações de fazer e de não fazer, ou seja, para que essa conduta não se repita com nenhuma outra trabalhadora. Paralelo a isso, tem nosso inquérito civil, que tem implicações em multas administrativas e indenizações de cunho trabalhista. Corre o inquérito policial na esfera criminal, e também a apuração sobre o caso de trabalho escravo pode gerar, sim, uma ação criminal por parte do Ministério Público Federal. O Artigo 149 do Código Penal prevê uma pena de dois a oito anos de reclusão para quem mantém trabalhador em condição análoga à de escravo. Então, além da esfera criminal, na qual pode sim resultar numa pena de prisão para a empregadora Melina, na esfera civil trabalhista multas e indenizações serão aplicadas. 

 

Como uma trabalhadora pode identificar que a situação dela é análoga à escravidão? O que essa trabalhadora pode fazer? O que uma pessoa da sociedade civil pode fazer ao tomar conhecimento de uma situação de trabalho análogo à escravidão?
O primeiro passo é denunciar. Nós, da fiscalização do trabalho, temos um desafio a mais com o trabalho doméstico, porque é desenvolvido no âmbito de uma residência, protegida, constitucionalmente, pela inviolabilidade do domicílio. Então, é muito difícil pela peculiaridade do trabalho, considerando que aquela trabalhadora não se encontra numa empresa, numa coletividade de trabalhadores, com colegas de trabalho presenciando os fatos. Elas geralmente se encontram só, trabalhando sozinha na residência, muitas vezes ela é a única trabalhadora. Os casos demoram mais até chegarem à auditoria fiscal do trabalho. Então, é muito importante que alguém da família, algum parente ou amigo, que reconheça essa situação, de uma trabalhadora que está trabalhando em jornada exaustiva, em condição degradante, sem nenhum direito trabalhista, sem férias, sem repouso semanal remunerado, anos e anos sem receber nenhum real de salário, faça a denúncia. É preciso também se fazer um trabalho de conscientização, porque essas mulheres muitas vezes são confundidas, tidas como pessoas da família. É importante que outra pessoa, que tenha ciência dessa informação, faça a denúncia. Ou ela própria. A gente tem recebido denúncias das próprias trabalhadoras que, vendo as notícias, se reconhecem, se identificam naquela situação, e ligam para o Ministério Público do Trabalho e dizem “olha, tô com essa situação”. Então, o que a sociedade civil pode fazer ao tomar conhecimento de uma situação de trabalho análogo ao escravo é denunciar no site do MPT, através dos canais do Disque 100 ou ligando para o órgão do Ministério do Trabalho. Essa denúncia tem de ser feita para que nós, da fiscalização, tomemos as providências cabíveis para fazer a fiscalização, a visita àquela residência, identificando essa situação, fazendo um resgate dessa trabalhadora. 

 

Temos acompanhado diversos casos de trabalhadoras e trabalhadores mantidos em situação análaga à escravidão no país. O que isso denota?
O Ministério Público do Trabalho tem como pauta prioritária erradicar o trabalho escravo. Nós temos, no âmbito do MPT, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, Conaete, criada para trabalhar especificamente neste tema, do trabalho análogo à de escravo e também o combate ao tráfico de pessoas. Então, no âmbito da Conaet, o MPT atua tanto de forma repressiva, indo até os locais onde o trabalho escravo ocorre e fazendo o resgate desses trabalhadores, sempre em parceria com o Ministério do Trabalho. Após esse resgate, os trabalhadores voltam aos seus locais de origem e têm direito ao pagamento de todos os direitos que eles estavam sendo privados, além de receber por três meses o seguro desemprego. Já os empregadores flagrados nessa situação vão responder a ações civis, com pagamento de indenizações e multas, bem como no campo penal, porque o trabalho escravo é crime. Em paralelo a essa conduta repressiva, nós temos diversos projetos de prevenção, porque a gente sabe que existe um grupo mais vulnerável (…) Temos projetos, inclusive, de concessão de terras para essas pessoas, para que não voltem a trabalhar, a serem exploradas como escravas. Erradicar esse tipo de conduta é meta prioritária do MPT. Infelizmente, sim, isso ainda existe e ainda é uma realidade, principalmente no meio rural, onde ocorre a maioria dos resgates. Os números confirmam que essa exploração é feita, em sua maioria, com pessoas com baixo índice de escolaridade, pessoas negras, numa faixa etária, em sua maioria, homens acima dos 18 anos. 

 

Por que o trabalho análogo à escravidão ainda é uma realidade no Brasil?
Pessoas mais vulneráveis, que ainda são exploradas em trabalho escravo, geralmente são recrutadas em regiões, muito pobres do nosso país, onde não há oportunidade de emprego. Como, por exemplo, pessoas da zona rural aqui da Bahia, que são recrutadas para trabalhar em fazendas, em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, durante um determinado período do ano. Desde o transporte até o alojamento nessa fazenda ou nesse lugar para o qual vão trabalhar tudo é muito precário. Infelizmente, as pessoas se submetem a isso porque não existe outra alternativa, outra perspectiva de vida. A gente vê uma perpetuação dessa condição, muitas vezes, de pai para filho, de filho para avó, bisneto. Vai se criando um ciclo. A gente tem um grupo mais afetado por isso: pessoas negras, em sua maioria, de baixa escolaridade, pessoas que moram em regiões muito pobres do país. Isso denota que existe gente sendo explorada.

 

O que fazer para erradicar este tipo de conduta?
Sem política pública local a gente não vai conseguir. Então, é necessário investir na qualificação, nas oportunidades, em políticas públicas de fomento à própria produção. Essas pessoas, se tivessem uma terra, meios para produzir, não se submeteriam a isso. Além de tudo isso, o trabalho de repressão é necessário (…) Sem mudar a realidade brasileira, as pessoas, infelizmente, ainda vão estar vulneráveis para este tipo de trabalho. 

 

O que a atuação à frente do grupo responsável pelo combate ao trabalho escravo da Bahia tem te mostrado?
Estou à frente dessa coordenação aqui na Bahia deste 2019, o que tem me ensinado muita coisa. Como coordenadora e procuradora do trabalho, antes de qualquer coisa, sempre gostei de ir a campo junto aos auditores participar das ações fiscais nas fazendas, para ver a realidade de perto. Tudo muda quando você visita aquela fazenda e vê o que é um alojamento precário. O que é uma condição degradante, trabalhadores morando em situações de alto risco, sem qualquer conforto, dormindo no chão, sem colchão, sem cama, sem banheiro, sem energia, sem água, bebendo da mesma água que o animal da fazendo bebe, não tendo lugar para fazer suas necessidades, suas refeições, não tendo um lugar para guardar os seus alimentos. São pessoas que trabalham debaixo do sol, sem nenhum EPI adequado, sendo mordido por qualquer tipo de bicho, animal peçonhento, cobra, escorpião. Muitos acidentes acontecem. Uma coisa é a gente saber que existe, outra coisa é ir lá ver este tipo de alojamento, de casa, esse tipo de condição degradante. Saímos da nossa realidade e criamos uma empatia direta em relação àquele problema e, realmente, querer que aquilo mude, que aquela realidade se transforme. Porque é possível, com política pública, com investimento, com olhar mais atento para essa população mais vulnerável. 

E sobre o trabalho doméstico, especificamente, quais os ensinamentos?
Tem sido um aprendizado muito grande chegar até essas casas e conversar com essas trabalhadoras. É inacreditável que ainda no século XXI a gente tenha pessoas trabalhando sem nenhum tipo de salário, remuneração, sem férias, sem repouso semanal, em jornadas exaustivas. E aí, conversando com essas trabalhadoras resgatadas, a gente conhece um pouco quem são essas mulheres, de onde vieram, qual é sua história, porque chegaram naquele ponto, o que as levou a permanecer naquela condição. Então, tem sido um aprendizado muito grande, a gente tem oportunidade de sentar, conversar, bater um papo. Estar junto ao sindicato das domésticas, com mulheres que lutam por essa causa, a gente acaba aprendendo muito. Tudo isso nos ajuda a criar empatia em relação ao problema e querer resolvê-lo.

SAIBA MAIS

O que é

A legislação brasileira caracteriza como trabalho análogo à escravidão situações degradantes à dignidade humana. As principais são:

# Colocar a saúde e a vida do trabalhador em risco;
# Jornadas exaustivas;
# Sobrecarga de trabalho e ausência de folgas;
# Isolamento do trabalhador;
# Ameaças e violências físicas e psicológicas.

 

Como denunciar 

# Por meio do site mpt.mp.br;

# Pelo App MPT Pardal, disponível gratuitamente para Android e IOs;

# Disque 100.

#Procure o Sindicato de sua cidade

#Escreva para themis@themis.org.br

 


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