Creuza Maria Oliveira: Profissão? Doméstica, com muito orgulho
Texto de Maurício Pestana, fotos de Rafael Cusato – Revista Raça Brasil.
Presidente da Federação Nacional de Trabalhadores Domésticos (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira é um exemplo de perseverança e garra. A baiana de 54 anos tem participação direta nas conquistas da mais antiga categoria de trabalhadoras brasileiras, as empregadas domésticas. Creuza vivenciou experiências que fazem parte dos problemas de discriminação racial e de classe no Brasil. Exploração de trabalho infantil, violência física e psicológica contra mulheres negras e pobres foram as que mais lhe marcaram. Começou a estudar aos 16 anos e, na década de 1980, entrou para o Movimento Negro Unificado (MNU), onde passou a lutar não só pela melhoria de sua condição social, mas pelo respeito a todas as mulheres, em especial as negras. Nesta entrevista exclusiva à Raça Brasil, a guerreira que ganhou espaço na imprensa brasileira e mundial por sua luta em prol de melhores condições de trabalho, e foi homenageada com o Prêmio Direitos Humanos, em 2011, demonstra simplicidade e firmeza na luta pelos direitos que, segundo ela, a Lei Áurea não assegurou.
Como a senhora avalia este momento de conquistas para as empregadas domésticas brasileiras?
Com orgulho, mas sem deslumbramento ainda há muito que se fazer. A história desta luta vem desde a época da casa- -grande e senzala, ou seja, desde a escravidão, quando negros e negras foram traficados da África para o Brasil e outras partes do mundo para trabalharem como escravos nas lavouras e canaviais. A maioria dos homens fazia essa atividade, enquanto as mulheres iam para o trabalho doméstico, um trabalho escravo doméstico, no qual eram tornadas mucamas, amas de leite ou quituteiras. A nossa raça foi traficada da África para o Brasil a contragosto e de forma violenta naqueles navios negreiros. Muitos morriam no meio do caminho e os que chegavam iam para o trabalho braçal, história que a gente já conhece bem. Daí em diante, mulheres e homens negros sofreram vários tipos de violência: eram forçados a se separarem de suas famílias e abandonarem os seus lares, conviviam com a violência sexual praticada pelos barões. Até que veio a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel. Mas as nossas carteiras continuaram sem assinatura e, na prática, nos faltava moradia digna, saúde e educação. Nós, mulheres, passamos de escravas que trabalhavam na casa-grande para criadas, hoje nos chamam de empregadas domésticas. Nós lutamos para sermos reconhecidas como classe de trabalho, ou seja, trabalhadoras domésticas ou trabalhadoras em residência. Formamos uma das maiores categorias de mão-de-obra feminina.
Conte-nos como aconteceu a luta sindical e fale sobre a dificuldade que vocês encontraram em quebrar paradigmas.
Essa luta não foi fácil, até porque essa categoria está no âmbito privado, é dispersa. Cada uma de nós está em uma casa, em um apartamento. Na empresa, é fácil você encontrar os companheiros no refeitório, na entrada, na saída, mas dentro de uma residência, não. Então, essa organização das domésticas, após a abolição, após tantos anos de exploração sem salário, começou a crescer na década de 1970, embora a organização sindical já tenha 77 anos de existência. O primeiro movimento de domésticas começou na década de 1930, por Dona Laudelina de Campos Melo, uma mulher negra, mineira, que veio para São Paulo trabalhar como doméstica. Dona Laudelina começou a organizar a classe e criou a primeira associação das trabalhadoras domésticas em 1976. Ela estava à frente de seu tempo, participou da Frente Negra ao lado do Abdias do Nascimento*, exigindo igualdade de direitos e participação dos negros na sociedade brasileira.
A senhora diria, então, que a luta da empregada doméstica está intrinsecamente ligada à luta do negro?
Com certeza. Não tenho dúvidas de que a organização da luta das domésticas está relacionada com questões de raça, gênero e classe. Essa categoria foi menosprezada, maltratada, violentada por ser formada por mulheres negras. A sociedade não vê esse trabalho como profissão, somos desvalorizadas. Ainda hoje ouvimos as pessoas dizerem “as empregadas domésticas não frequentaram a universidade, porque deveriam ter os mesmos direitos dos trabalhadores?”. Não é à toa que o congresso ainda não aprovou todos os direitos da categoria, porque nós temos os três poderes – Legislativo, Executivo e o Judiciário -, como nossos patrões.
* Abdias do Nascimento foi um político e ativista que lutou pela inclusão social e racial das populações afrodescendentes no Brasil. Figura de grande importância para a reflexão sobre a questão do negro na sociedade brasileira.
Farei uma pergunta que a senhora já começou a responder: quais foram as maiores pressões contrárias à regulamentação desses direitos? Como foi a reação da mídia em relação à causa?
A mídia sempre é contrária à questão dos direitos dessa categoria e faz campanha de terrorismo sobre o desemprego. Dizem que o momento não é bom para os empregadores e acabam influenciando as empresas a mandar um monte de gente embora. Quando os meios de comunicação anunciam o crescimento do desemprego e as empresas demitem pessoas, somos afetadas diretamente. Isso ganha mais peso ainda quando figuras importantes na mídia fazem esse tipo de campanha. Para citar alguns nomes, Ana Maria Braga, Fátima Bernardes, um apresentador da Bandeirantes, entre outros.
A senhora está afirmando que essas pessoas prejudicaram o processo de regulamentação?
Sim, principalmente a Ana Maria Braga. Agora ela mudou o foco, por causa dessas manifestações que estão acontecendo no Brasil todo. Mas quando ligávamos a televisão, só víamos sobre o desemprego, dizia que a sociedade não vai ter condições de pagar os encargos. Ela levou especialistas “patrões” para fazer cálculos mentirosos e criou um terrorismo, sem perceber que somos uma classe importante para todos, porque nós construímos esse pais, nós contribuímos para a economia, somos aproximadamente 7,2 milhões de pessoas aqui no Brasil, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Somos o país com a maior população de trabalhadores domésticos em todo o mundo, sendo a maioria mulheres. Tem países que não têm 7 milhões de habitantes e, no entanto, nós temos mais de 6,7 milhões de mulheres, grande parte delas mães de família, que se sustentam exercendo este trabalho.
Ficamos curiosos sobre os cálculos que fizeram no programa da Ana Maria. Conta mais pra gente.
É uma campanha contrária, para que nós não avancemos nos direitos, que acaba criando essa visão nos meios de comunicação. Consequentemente, a sociedade pressiona os parlamentares para que não aprovem a emenda. Esse tipo de informação põe em risco nossos avanços. A câmara de deputados aprovou a emenda com unanimidade e o senado também, só que quando chega no processo de regulamentação, começam a diminuir os direitos, tiram benefícios.
Com a regulamentação da emenda das domésticas, a senhora acha que haverá uma quarteirização no serviço? É possível que algumas empresas entrem no sistema para empregar as trabalhadoras pagando salários mais baixos?
Eu não duvido que isso possa acontecer, até porque toda vez que conquistamos um direito eles arranjam uma forma de burlar a lei**, de não cumpri-la, de precarizar mais esta categoria, que já foi e continua sendo desrespeitada. Foi assim em 1972 e em 1988, quando conquistamos os principais direitos que temos hoje. Conquistamos o salário mínimo, que não era obrigatório até então; conquistamos o 13º, aviso prévio, folgas aos domingos, licença- -gestante. Foram direitos importantíssimos vindos com a Constituição de 1988. Além disso, a classe de trabalhadoras domésticas cresceu de 4 para 7 milhões nesse período.
Uma das cenas mais bonitas dessa campanha foi quando eu vi a senhora em uma foto com a ministra Luiza Bairros, e, se eu não me engano, com a Benedita Silva e a Janete Pietá, que são mulheres que conhecem profundamente essa luta. Elas tiveram papel fundamental nessa campanha?
A Benedita da Silva é uma das principais precursoras desta luta. Em 1988, como deputada, ela foi a nossa porta-voz no congresso, e foi quando avançamos nossos direitos. Então, imagina, há 25 anos conseguimos conquistas significativas. Eu lembro que naquele ano nós fomos até Brasília e a Benedita estava lá, defendendo nosso projeto. Inclusive foi ela que nos convenceu a viajar pra lá. Com esse incentivo, passamos a ir com frequência para o Distrito Federal em busca de apoio de outros sindicatos e movimentos sociais. Me lembro de uma reunião que tivemos com o Ulysses Guimarães, presidente da Câmara na época. Naquele dia, não queriam nos deixar entrar no Congresso e foi uma luta na qual a Benedita teve participação ativa, negociando com os seguranças para que entrássemos. Já na audiência, formávamos um grupo significativo de domésticas de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Recife… Gente de todo Brasil. Ulysses nos atendeu e nos deu parabéns, dizendo que era uma categoria importante para o Brasil. Quando nos passou a palavra, elegemos a recifense Merlina de Carvalho, que hoje está com 80 anos, para falar, já que ela fazia parte da região do Brasil onde há mais exploração até hoje. Ela disse: “Senhor presidente, nós não queremos ser da família, nós queremos ser reconhecidas como classe trabalhadora desse País, e se o senhor realmente reconhece que a nossa categoria é importante para a sociedade, então é a hora da votação do nosso projeto. O senhor e todos os deputados levantem o crachá a favor”. Foi maravilhoso, ela foi muito aplaudida.
** A regulamentação dos direitos das domésticas foi aprovada, mas para virar lei, o texto que define os direitos, entre eles o pagamento de hora-extra e férias, ainda precisará passar pelos plenários do Senado e da Câmara, antes da sanção da presidente Dilma Rousseff.
Apesar do ritmo lento, a regularização dos direitos das trabalhadoras deve trazer melhorias para vários problemas que vocês enfrentam. Quais são os mais críticos?
Ainda existem todos os tipos de problema que você possa imaginar, começando pelo descumprimento da lei, já que muitos empregadores não assinam a carteira. Dos sete milhões de empregados domésticos contabilizados pela OIT, nem dois milhões têm registro. A carga horária chega até 16 horas por dia, principalmente para as que moram no local de trabalho. Sempre tem aquela história de ficar à disposição do patrão. Por outro lado, muitas das que moram em suas próprias casas saem às cinco da manhã e só retornam depois das oito da noite devido ao transporte ruim e à distância. No dia seguinte, encaram tudo novamente. Sem contar que precisam cuidar de suas próprias casas e dos filhos. Por isso, nosso sindicato luta por programas de políticas públicas que atendam a classe, como creches e escolas de período integral. Lutamos por medidas que afastem nossos filhos do perigo das ruas e os aproximem dos estudos. Muitas dessas mães já viram seus filhos se envolverem com o tráfico, já viram suas meninas serem violentadas ou engravidarem muito jovens, enquanto tinham que sair para cuidar da casa e dos filhos dos outros. O assédio moral dentro do local de trabalho também acontece, e as novelas incentivam isso. Nesta última que passou no horário das sete, um rapaz assediava a trabalhadora doméstica contratada por seu pai. Logo, muitos “filhinhos de papai” acham normal esse tipo de comportamento. O assédio sexual é algo muito sério, porque muitas dessas mulheres, quando se encontram em tal situação, ficam com medo de perder o emprego e calam-se. Outras pedem demissão e saem prejudicadas, passam por dificuldades. O tratamento é uma questão séria também. Existem aquelas pessoas que gritam, tratam mal, xingam como se fizessem parte de uma classe superior. A dificuldade na regularização dos direitos esbarra no pensamento dos patrões. Eles alegam que nós não geramos lucros. Nós damos condições para que eles possam sair em busca de emprego e estudo e repomos as suas forças de trabalho. Proporcionamos saúde, limpeza, bem-estar. A gente exerceu e exerce um papel fundamental na independência da mulher branca de classe média, porque cuidamos dos seus lares e filhos para que possam estudar e atuar no mercado de trabalho ou até na política.
Qual é o próximo passo para as trabalhadoras domésticas?
Eu acho que o que falta é uma mudança na mentalidade do brasileiro. Claro que em muitos países a situação é parecida com a nossa, e em outros, como a Índia, é até pior. Estamos conquistando vitórias importantes hoje temos sindicatos em quase todo Brasil, existe o Grupo de países da América Latina e Caribe (GRULAC), que debate o trabalho doméstico decente em convenções. Aos poucos, parece que estão compreendendo que o trabalho doméstico é um fazer social. Tão importante quanto essa mudança de concepção é a aprovação dos direitos pelos parlamentares. Torço muito para que mudanças realmente aconteçam e que novas leis sejam sancionadas. Ainda assim, há uma longa caminhada, porque uma coisa é ter os sete direitos garantidos pelo Estado, outra é tê-los funcionando na prática.
Para encerrar, como a senhora tem visto as últimas manifestações que estão sacudindo o Brasil?
Eu acho que essas mobilizações são importantes para a sociedade, o povo precisa se manifestar, precisa reivindicar os seus direitos em prol do bem estar coletivo. É um momento de mudança, porém tem de ter responsabilidade. Acredito que, nos últimos anos, o governo tem melhorado, mas ainda há muito o que se fazer nos setores de saúde, educação e moradia.