É domingo, e como diz o tradicional verso, “eu vou ao Maracanã, torcer pro time que sou fã”. Faz um calor escaldante no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia ou em qualquer região do Brasil em pleno verão – por isso, usar calça está fora de cogitação.

Ou deveria estar – mas aí a gente olha para o armário; olha para as nossas pernas; e se lembra das coisas que sempre ouvimos quando vamos de short ao estádio.

Mas é 2017, não tem mais isso, não é mesmo? Não, não é.

O fiu fiu é o que de mais leve costumamos escutar. Se for de carro, já começa na hora de estacionar. “Vai rainha, desbica, rainha…ôôô minha rainha!”. E no caminho para o portão, só piora. “Que gostosa, meu Deus”. “Ô São-Paulina, com você eu caso”. “Nossa, agora sou Corinthians desde criancinha”. “Que delícia, hein, Palmeiras”. “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo, né? Gostosa.” “Aí sim, hein, Tricolor”.

Olhares que você não queria ver, gritos que você não queria ouvir, e de repente toques que você só poderia temer. Uma mão boba ali, um esbarrão aqui, você olha ao redor e só consegue sentir: “o que eu tô fazendo aqui?”.

São comportamentos tão corriqueiros como esses que nos fazem muitas vezes pensar que o estádio realmente não é lugar para nós. O assédio, o medo, a intimidação já afastaram e continuam afastando milhões de mulheres das arquibancadas.

Mas algumas delas decidiram o caminho oposto: OCUPAR e RESISTIR.

Mais do que isso, elas têm tentado transformar o ambiente machista do futebol para que mais e mais mulheres possam desfrutar dele. A ideia é simples e partiu de algumas torcedoras espalhadas pelo Brasil – e a gente espera que pegue.

Não se sabe ao certo de onde surgiu, mas fato é que mulheres apaixonadas por futebol do Oiapoque ao Chuí estão se mobilizando pela campanha #EstádioSemAssédio.

Uma das maiores torcidas a partir para a ação foi a Galo Marx, do Atlético-MG. As mulheres de lá decidiram “sair do Facebook” e levar a campanha para os estádios – assim, elas passaram a deixar o recado nos arredores do Mineirão e do Independência em dia de jogo. “Queremos Estádio Sem Assédio”, era o recado que se lia em uma árvore bem em frente à arena utilizada para a Copa do Mundo.

Patrícia Muniz, que já foi muitas vezes alvo dos assédios incômodos no estádio, é uma das torcedoras do clube que liderou a iniciativa e está tentando fazê-la “pegar” em outras torcidas.

“Já passei por várias situações com torcedores do meu próprio time. Cara parando na minha frente enquanto eu passava e me chamando de material, falando que ‘vai nesse material’, pedindo beijo. É insuportável”, disse às dibradoras. Cansada de não poder ir ao estádio em paz, ela e algumas amigas decidiram agir.

“O debate sobre um #EstadioSemAssedio sempre foi recorrente no nosso grupo, desde a criação das Feministas do Galo – originalmente o coletivo de mulheres da Galo Marx, mas que vem se expandindo. Pensamos com frequência sobre a dificuldade que enfrentamos para ocupar as arquibancadas e relatos de assédios nos estádios estavam sempre pipocando entre um jogo e outro”.

“Com o início da temporada 2017, pensamos que estava na hora de falar sobre isso. Começamos, entre nós mesmas e em diálogo com torcedoras do Cruzeiro também (Resistência Azul Popular), a divulgar essa hashtag e a pensar formas de sair da internet”, contou.

O problema é de “sair da internet”, porém, é o medo de ser hostilizada e sofrer ainda mais violência. “O medo das meninas de abrir uma discussão sobre isso nas ruas e estádios ainda é grande, principalmente pela reação negativa dos torcedores frente ao avanço de nossas lutas no futebol. Por isso, estamos, por enquanto, apenas colando alguns cartazes nas proximidades do Independência e do Mineirão – muitos já foram, inclusive, arrancados.

Após o I Encontro Nacional do Futebol, Mídia e Democracia, realizado no último sábado, onde coletivos de diversos times estavam presentes, foi decidido que essa seria uma pauta tratada nacionalmente por esses grupos.

A Torcida Camisa 33, do Remo, fez algo ainda mais interessante. Usando uma ilustração bem didática, as torcedoras do clube de Belém divulgaram uma cartilha contendo o que “pode” e o que “não pode fazer” em um estádio sem assédio.

“Conversar? Pode. Empurrar as minas? Não pode. Perguntar o nome? Pode. Se aproveitar na hora do gol? Não pode.”

Se achavam difícil entender, agora já não dá mais para reclamar: está desenhado.

Mas se as torcidas têm se movimentado pelo fim do assédio nos estádios, os clubes,, por sua vez ainda não assumiram um papel nisso. Frequentemente criticados por “ignorarem” as mulheres em suas ações de marketing, eles seguem se omitindo a respeito do tema.

Algumas torcedoras, porém, têm tentado chamar a atenção de seus clubes para a importância de uma campanha contra o assédio. Clarice Senna Panizzon escreveu uma carta ao Flamengo chamando a atenção para a questão.

“É evidente que o Flamengo precisa ser contra o abuso em todos os lugares e em todos os âmbitos da sociedade. Entretanto, isso não é motivo para que se omitam de seus deveres para combater a violência no ambiente que lhe é mais familiar: dentro dos estádios. São torcedoras, jornalistas, bandeirinhas e muitas outras mulheres que também fazem parte dessa paixão e que precisam de um olhar crítico para este problema”, alertou.

“Propomos que ajam exercendo vossa influência para que a nação rubro negra, outros clubes e seus torcedores atentem sobre a enorme relevância deste assunto. O Flamengo é uma figura essencial no meio esportivo assim como é uma presença saudável das torcedoras nas canchas do país. A violência contra a mulher é intolerável e contamos com seu apoio para erradicá-la do futebol”.

Já passou da hora dos clubes de futebol entenderem sua importância na sociedade e tomarem atitudes diante dos preconceitos que são reproduzidos livremente no estádio, como se ali fosse um “Estado de exceção”.

O Rio Claro, recentemente, teve uma ação louvável banindo o grito de “bicha” da torcida na hora do tiro de meta – outra atitude infantil e homofóbica que se propagou no futebol brasileiro. Deveria servir de exemplo. O futebol tem que ser de todos, e os clubes têm a obrigação de assegurar que ele seja – oferecendo ingressos mais baratos para dar acesso a quem não pode pagar, defendendo um estádio sem assédio para que as mulheres possam chegar, e se posicionando contra qualquer preconceito para garantir a todo torcedor o seu lugar.

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