Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

“As mulheres vão garantir a democracia no Brasil”- Entrevista com Amélia Teles

21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres

Para marcar os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, que inicia dia 20 de novembro no Brasil, a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos publicará em suas redes sociais vídeos com depoimentos de militantes de diversas áreas que se somam no combate a todas as formas de violência contra as mulheres e meninas. Acompanhe pelo nosso Instagram e Facebook

O primeiro é da ativista feminista Maria Amélia de Almeida Teles, que convoca a população para participar dessa campanha mundial. Amelinha, como é conhecida, também concedeu entrevista para a Themis. Confira abaixo.

“As mulheres vão garantir a democracia no Brasil”

Para Amélia Teles, o ponto comum a todas as mulheres, e que pode ser motivo para uni-las, é a opressão que todas sofrem. Amelinha é uma militante política que foi presa e torturada durante a ditadura militar no Brasil. Atualmente, integra a União de Mulheres de São Paulo, atua na Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e foi assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Ela também faz parte da coordenação do projeto Promotoras Legais Populares, formada pela Themis há 25 anos. 

Durante a conversa, Amélia falou sobre ditadura militar, feminismo, violência contra mulher e política. Para ela, são as mulheres que irão garantir a democracia no país. Falou também sobre a importância dos encontros presenciais do movimento feminista. 

Themis: Como era a organização do movimento de mulheres na época da ditadura no Brasil (1964 -1985)? 

Amelinha: Em 64, as mulheres feministas não estavam organizadas, as mulheres que estavam organizadas eram mobilizadas pela igreja ou por organizações financiadas pelos EUA. Essas mulheres não se consideravam feministas, mas se denominavam de femininas.

Eram conservadoras, eram mulheres contra o governo legítimo e eleito pelo povo João Goulart. Elas eram a favor do endurecimento do Estado e do sistema. Tanto é que elas vão sair em marcha pedindo o golpe de Estado e a deposição do governo eleito. Elas saíam segurando cartazes com os dizeres “nem foice e nem martelo, queremos o verde e o amarelo” e  “vermelho só é bom no batom”. Existia um movimento forte com o pretexto de defender a família, uma pauta que era contra a legalização do aborto e contra o divórcio, por exemplo. A reforma agrária também era atacada, era um tema que era criticado com muita ênfase, entre outras medidas progressistas. 

Esses movimentos eram liderados por mulheres, mas sob a proteção de políticos, empresários e a alta cúpula da Igreja Católica. Lembro que eles colocavam meninos nas ruas para colher assinaturas contra a legalização do aborto e contra o divórcio. Então, o fato de as mulheres progressistas, democráticas, mulheres de esquerda não estarem organizadas era um mau sinal. 

É importante lembrar que neste ano (2019) faz 50 anos que a socióloga, feminista e professora Heleieth Saffioti publicou o trabalho Profissionalização feminina: professoras primárias e operárias. Eu considero ela pioneira, acho que foi a primeira vez que vi um trabalho com uma visão crítica e de esquerda sobre as questões das mulheres. 

Saffioti revelou que o Juscelino Kubitscheck fechou a Federação das Mulheres do Brasil, que era uma organização de mulheres que tinham uma visão mais crítica da sociedade. A Federação foi fechada a pedido da Igreja Católica, que apontava que essas “mulheres comunistas subiam os morros para ensinarem comunismo para os favelados”, então, na visão deles tinha que proibir essa organização.

Quando Juscelino fechou a Federação, os homens comunistas, que estavam no governo inclusive, não reclamaram e as mulheres do campo progressista não tinham mais um espaço de organização. 

T: Você disse que o feminismo naquela época não era uma pauta dos movimentos de esquerda no Brasil. Como você conheceu e se aproximou do feminismo em um contexto de ditadura? 

A: Nós, mulheres, vamos ser manipuladas pelos golpistas e isso me marcou muito. Tanto é que eu sempre falo: dia 19 de março de 1964 (dia que aconteceu a conservadora “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”) eu me torno feminista. Uma feminista que buscava respostas: “por que nós não estamos organizadas?” “por que nós não tomamos em nossas mãos as nossas decisões? a nossa vida?”. Por que abandonar as mulheres à própria sorte e não trabalhar junto a elas na sua organização?! Tive que viver na clandestinidade, mas fiquei buscando essas respostas, que eu vou encontrar só nos anos de 1970, inclusive, muito na leitura de Heleieth Saffioti.
Antes disso, eu não me considerava feminista, pois não era uma questão pautada. Aqui no Brasil, eu não via ninguém falar sobre feminismo, ninguém se assumia como feminista. Eu lembro, por exemplo, quando a Betty Friedan (ativista feminista estadunidense) veio ao Brasil, em 1979, e o Jornal Pasquim (jornal alternativo de crítica a ditadura) tirou o maior sarro dela.

A questão do  feminismo no Brasil vem muito forte em 1975 com a campanha internacional da ONU, pois aquele foi o ano Internacional da Mulher. Nós aproveitamos essa pauta para trabalhar essas questões em um contexto de ditadura. O jornalista Vladimir Herzog tinha sido assassinado dentro do DOI-CODI, e nós estávamos lançando o primeiro jornal feminista do Brasil, que foi o Brasil Mulher, em outubro de 1975. Aí, nós nos colocamos: somos feministas. E a partir daí fomos muito atacadas, o tempo todo, inclusive pela própria esquerda. 

T: Tendo em vista a conjuntura atual do país, de um governo conservador no poder, é possível traçar semelhanças entre a realidade das mulheres com o período da ditadura? Como você vê o papel das mulheres nesses contextos? 

A: A semelhança de 1964 para agora é grande porque o alvo são as mulheres, foram no passado e são agora. Mas, em 1964, as mulheres estavam desorganizadas, não havia um movimento consciente feminista, e hoje existem vários movimentos feministas. Os feminismos estão em alta no Brasil inteiro. Há coletivos, há o protagonismo das mulheres negras, das mulheres indígenas. Imagina, é primeira legislatura que uma mulher indígena é eleita na história do país.

E por essa organização e fortalecimento das mulheres o ódio é mais articulado contra nós. Há uma estratégia para atingir diretamente os feminismos. Você vê, por exemplo, a escolha da ministra Damares Alves (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) é um sinal de política conservadora e atrasada. Querem colocar as feministas como contrárias à família. Mas eu sempre digo que nós, feministas, somos muito mais à favor das famílias do que eles (atual governo), porque nós consideramos todas as formas de família, não nos restringimos apenas à família heteronormatizada. Consideramos famílias homoafetivas, lesbioafetivas, poliafetivas… nós tratamos de considerar todas essas famílias como sujeitas políticas, sujeitas de direitos.

Mas, se hoje o embate é maior, é porque o debate ideológico é maior. É um governo que não é apenas branco e elitizado, mas é também truculento, que faz questão de ofender as mulheres o tempo todo, como por exemplo o que ele (Jair Bolsonaro) falou para a deputada Maria do Rosário. Essas falas e ofensas são violações aos Direitos Humanos das mulheres. Uma política que busca nos desgastar, nos desmoralizar. Mas eu acredito que nós estamos bem organizadas para enfrentar esse embate. 

E somos nós, mulheres, que vamos garantir a democracia nesse país. Ou a gente se organiza e garante ela, pois não vão ser os homens, tenho certeza. 

T: Você acha que nós vivemos em uma democracia?

A: Nós vivemos em uma democracia, mas nós vivemos hoje em um Estado de exceção. Digo isso porque, a partir daquele momento, em 17 de abril de 2016, quando houve a votação da abertura do processo de Impeachment da presidenta Dilma, e que o Jair Bolsonaro, na época deputado, falou “em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, ou seja, ele reconheceu que Ustra é um torturador e que Dilma foi torturada. Ele faz apologia da tortura e do torturador.

Ele pode pensar do jeito que ele quiser, ninguém aqui está para controlar o pensamento das pessoas. Mas, dentro de um Parlamento, um espaço democrático, uma instituição do Estado democrático de direito, isso foi uma ofensa grave, uma violação grave aos Direitos Humanos. E que não teve reação nenhuma. No mínimo, tinha que ter tido uma questão de ordem e suspendido a sessão para que fosse feita uma retratação. Era o mínimo que deveria ter sido feito. Ninguém fez.

Então, é incompatível a democracia com tortura. Ou seja, fazer apologia à tortura, confirmar o torturador, isso não é compatível, por isso eu acho que estamos em um Estado de exceção. Percebo que os marcos civilizatórios são todos questionados e desmoralizados por esse governo e nós não temos nenhuma reação de acordo com a necessidade do momento, à altura. 

De qualquer maneira, nós precisamos defender a nossa constituição, que foi feita com tanto trabalho. Então, hoje, ou a  gente defende a democracia, ou nós vamos ser massacradas por essa política.

T: Como você vê a questão da violência contra as mulheres? Quais os avanços que precisamos ter nas polícias públicas, por exemplo. 

A: Hoje, temos dados e estatísticas sobre a questão da violência contra as mulheres. Antes não se tinha nada. E desde que isso começou a ser feito a gente vê só aumentar os números, e nós estamos em um momento de acirramento. Quanto mais é atacada a democracia, mais as mulheres são atacadas – afinal, nós somos a maioria da população brasileira. 

A Lei do Feminicídio, por exemplo, é muito recente (2015). Antes, as mulheres eram mortas pelos seus companheiros e isso era enquadrado como crime passional, ou, como já existiu, “legítima defesa da honra”. Nesse sentido, já teve várias justificativas que ajudaram a naturalizar esse crime e não tratá-lo como uma violação aos direitos das mulheres. É tudo muito recente.

A Lei Maria da Penha, por exemplo, é uma lei muito boa, mas poderia ser mais enfática. Quando ela (a Lei) fala sobre a reeducação dos agressores, tinha que falar de uma reeducação de toda a sociedade. Sabemos que a violência contra as mulheres é um aprendizado, e nessa situação você pode aprender a ser vítima e ser agressor. Nós temos que desconstruir esses papéis. 

A Lei precisaria ser mais enfática também no atendimento multidisciplinar das vítimas e pensar as políticas públicas em uma perspectiva de gênero, raça e classe. Você precisa trabalhar com uma ideia de interseccionalidade sempre, não é só de vez em quando. Ou se trabalha assim, ou você não enfrenta o problema. 

Por exemplo: recentemente, o Mapa da Violência mostrou que o feminicídio de mulheres brancas diminuiu, mas o de mulheres negras aumentou. Por quê? É por que a Lei Maria da Penha se aplica para branca e não para negras? E não venha dizer que o homem negro é mais agressivo que o homem branco, ou que a mulher negra é menos informada. Muito desse problema está no atendimento a essas mulheres, na delegacia ou no Ministério Público. O sistema de acesso à justiça é racista, não se atende da mesma forma. 

Além disso, o acesso à justiça, quando se fala de violência contra mulheres, ele precisa ser mais amplo, tem que abranger a educação, a saúde, a habitação, a assistência social, não é só pensar em relação a juiz e delegado, isso é muito limitado. Essas questões precisam ser trabalhadas na formação dos profissionais que atendem às mulheres que sofrem violência. Se não tiver uma formação antirracista e antisexista nas escolas, dificilmente vamos ter profissionais a altura dos problemas que nós enfrentamos.

Outra questão é que os números que temos sobre a violência contra mulheres ainda sofrem pela subnotificação. Ou seja, nem os dados corretos nós temos. Os feminicídios não são notificados conforme se deveria, muitos Boletins de Ocorrência não são preenchidos de forma adequada. E mesmo os dados que temos não são devidamente apurados ou investigados. É fundamental que todos os elementos da realidade dessas vítimas sejam levantados para traçar políticas públicas adequadas. 

T: Ano passado, durante a campanha eleitoral, seu nome foi vinculado a uma notícia falsa e viralizou nas redes sociais. As fake news foram utilizadas como ferramenta de campanhas por candidatos. Como você percebe a questão das redes sociais e da informação para os movimentos sociais? 

A: Hoje há um negacionismo da História, tem que falar que houve uma ditadura no Brasil, que funcionou de 1964 a 1985, que de 1985 até 1989 o país foi governado por um governo civil e não eleito pelo povo, que a constituinte de 1986, 87 e 88 foi um Congresso nacional constituinte, não chegou a ser uma Assembleia Nacional constituinte. Temos que falar tudo!

Então, a única forma de defesa que nós temos para não sermos manipuladas pelas falsas informações que circulam nas redes sociais é conhecer a História do Brasil. 

Precisamos nos organizar! Esse ano, por exemplo, nós estamos fazendo 25 anos de Promotoras Legais Populares, sem nenhuma interrupção. É uma forma de atuarmos na formação cidadã, e isso passa pelo conhecimento da história e pela boa informação.

Não tem como ser bem informada se você não tiver organizada e articulada. Porque você pensa que está bem informada, mas quando leva essa informação para um grupo, por exemplo, os questionamentos vão ajudar a amadurecer essa informação e abrir canais para novas informações.

Mas, além disso, eu vejo que nós precisamos de muita solidariedade entre nós, buscar um trabalho mais presencial e não só virtual, pois é no encontro presencial que nós vamos trazer mais confiança, mais força. Vamos nos sentir mais seguras para fazermos uma articulação maior. Os movimentos estão com dificuldade por falta de uma unidade política e de um olho no olho. 

Nossa rede demanda solidariedade, afetividade. Eu percebi isso quando fui atacada e ameaçada ano passado, quem me segurou foram, principalmente, as Promotoras Legais Populares de de São Paulo, do Paraná e do Rio de Janeiro, que me deram apoio e afeto. A gente precisa ter isso, essa rede de apoio para todas as mulheres. É o que a Conceição Evaristo escreveu um dia: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. O esforço é grande, mas precisamos ter o presencial como pauta, para trocar afeto e informação.

Amélia Teles é uma ativista e sobrevivente da Ditadura


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