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Laura Somoggi, co-CEO da Fundação Womanity: “Encontrar estas mulheres me deu muita esperança”

Na última semana, a Themis recebeu a visita de Laura Somoggi, co-CEO da Fundação Womanity. No final do ano passado, a organização foi vencedora do Prêmio Womanity ao lado da Associação Cabo-verdiana de Luta Contra a Violência Baseada no Gênero (ACLCVBG), de Cabo Verde, com o “Fla SIM pa Mudjer: Mulheres juntas prevenindo a violência em Cabo Verde”, projeto que foi lançado em maio deste ano. O nome é uma importante ferramenta de comunicação e divulgação do projeto: Fla Sim pa Mudjer significa “Dizer Sim Para as Mulheres” e foi escrito em crioulo para que possa ser entendido por toda a comunidade de Cabo Verde.

Durante os dois dias em Porto Alegre, Laura conversou e almoçou com Promotoras Legais Populares (PLPs), Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMCs) e trabalhadoras domésticas, conheceu o Serviço de Informação a Mulheres (SIM) Canoas e ouviu relatos de experiências das ativistas do local. Também participou de reunião de trabalho junto à equipe Themis e de almoço com sócios e apoiadores da organização. 

Ao final da visita, Laura concedeu entrevista na qual abordou a importância do projeto em parceria com Cabo Verde, violência de gênero e percepções sobre o que observou em Porto Alegre. Confira, a seguir, trechos da conversa. 

Durante visita a Porto Alegre, Laura conheceu projetos e interlocutores da Themis. Foto crédito: Janaína Kalsing/Themis/Divulgação

Laura, podes um falar sobre o que representa o Projeto Fla Sim e a sua importância?
É um projeto que leva  o programa de Promotoras Legais Populares, as PLPs, da Themis, para ser adaptado ao contexto de Cabo Verde. Então, a ideia é entender muito bem qual a metodologia adotada, de muito sucesso em várias regiões do Brasil, e adaptá-la a um país diferente, que tem alguma identificação cultural por também ter sido colonizado por Portugal. A Fundação Womanity apoia projetos para avançar os direitos das mulheres no sul global. E faz parte da nossa estratégia ajudar a catalisar parcerias entre organizações de países diferentes no sul global para trabalharem juntas em projetos de prevenção de violência contra mulheres e meninas. Essa é uma forma de fortalecer relações entre diferentes países. Como em muitas outras áreas, também nas áreas de desenvolvimento internacional e impacto social, há uma dinâmica de poder desigual entre o norte global e o sul global. Em geral, a postura é de que o norte global sabe quais são as soluções, têm os melhores projetos, entende como as coisas devem ser feitas. Porém, muitas vezes, organizações do norte global chegam para implementação no sul global sem ter a compreensão daquele contexto. Somado a isso, há um entendimento de que o conhecimento gerado no norte global é o correto, é o que vale. As  parcerias do sul para o sul quebram essa dinâmica desigual de poder e questionam qual conhecimento e qual experiência valem mais. O conhecimento que vem do trabalho com mulheres, do movimento feminista, por exemplo, é tão valioso quanto o conhecimento acadêmico. O programa da Themis é  inovador e teve um impacto positivo no Brasil. Acredito que levá-lo para Cabo Verde por meio de uma colaboração entre organizações irmãs, como elas mesmas se chamam, para atender a uma demanda local, respeitando as normas sociais locais – que são diferentes do Brasil – vai ser importante tanto para a Themis quanto para a Associação de Cabo Verde.

Qual a importância do nível de cooperação que esse projeto promove?
São parceiros que vêm de lugares diferentes, com pontos de vista distintos, mas que têm igualmente a responsabilidade e a capacidade de parceria e adaptação. Por um lado, há a Themis, organização que criou o projeto e entende profundamente como ele funciona; de outro, há a Associação de Cabo Verde, que entende o contexto local, conhece as relações com os atores locais e tem penetração na comunidade local. Então, a cooperação combina essas duas forças. Conhecimento, experiência e vontade para aprender são o que fazem a parceria ser tão poderosa.

Podes falar um pouco mais sobre o porquê de a Themis e a Associação de Cabo Verde terem sido selecionadas?
Foi um processo muito competitivo. Para se ter uma ideia, havia 167 projetos inscritos. Foram várias etapas até afunilar e restringir a dez projetos que tivessem: histórico forte de impacto em prevenção de violência contra mulheres e meninas, proposta de adaptação que fosse inovadora e uma parceria que se mostrasse complementar e estratégica. Fomos nos aprofundando para entender a estratégia e as motivações por trás das parcerias. Na etapa final, de dois meses, havia três pares de finalistas. Nesse momento, oferecemos uma mentoria que auxiliou as organizações a descreverem o projeto de forma mais articulada e assertiva. Como fiquei muito envolvida no processo, não participei da seleção. O processo demanda muito dos participantes, mas ajuda a fortalecer a parceria antes das organizações começarem a trabalhar na adaptação e implementação do projeto. Ou seja, já começam a visualizar juntas como vai ser a parceria. A decisão pela escolha do projeto da Themis com a Associação de Cabo Verde se deu de forma unânime pelo painel de seleção, reconhecendo o trabalho desenvolvido. 

Por que o projeto transforma?
A Themis e a ACLCVBG estão trabalhando muito em fortalecer intervenções para prevenir a violência antes que ela aconteça, a chamada prevenção primária. Outro fator crítico para que haja transformação é o engajamento de diversos atores importantes na sociedade: desde lideranças comunitárias e escolas até órgãos de Justiça de Cabo Verde – algo que as organizações parceiras sabem fazer muito bem. O projeto foi lançado em maio e trabalharemos por três anos juntas. Já fui a Cabo Verde e, agora, vim a Porto Alegre conhecer mais de perto o projeto das PLPs desenvolvido pela Themis e posso dizer: é uma combinação bem poderosa, estou otimista. 

Tens acompanhado os casos de violência de gênero no Brasil e no mundo? Como tens enxergado?
Tenho acompanhado em vários países, especialmente por meio de estudos e conversas com organizações parceiras da Womanity que fazem pesquisas e trabalhos em diferentes comunidades no sul global. Durante a pandemia, se, por um lado, houve um aumento da violência de gênero; por outro, muito mais se falou sobre o assunto. Isso é benéfico, porque muitas vezes as pessoas não têm a dimensão do que está acontecendo e de como é muito mais comum do que se imagina. Há, por exemplo, um pouco do mito de que a violência doméstica acontece com muito mais frequência nos países mais pobres, o que não é verdade. A violência acontece independentemente de classe social, nível educacional. É um fenômeno global. Há a origem básica da violência em qualquer lugar, que é a desigualdade de poder entre os gêneros, mas ela se manifesta de formas diferentes nos distintos lugares e culturas. Nós vemos isso em  todos os locais onde a Womanity atua.

No Brasil, estamos em pleno processo eleitoral. A violência política de gênero tem se manifestado fortemente, também. Como percebes esse tipo de violência?
Não trabalho diretamente com violência política, mas entendo que, quanto mais as mulheres avançam para tomarem seus espaços, mais violência surge para tentar impedi-las. As mulheres estão ocupando os espaços, lutando pelos seus direitos, criticando o sistema, e o sistema vai lá e tenta empurrar a mulher para fora. Pesquisas mostram que mulheres acabam não entrando para a vida pública por medo. O medo atrapalha, gera sofrimento, mas muitas mulheres resistem. 

O que considera estratégico para superar a violência de gênero?
Uma mudança cultural profunda, embora seja demorada e difícil. O que se fala muito nas pesquisas e projetos que tiveram impacto positivo é o uso do modelo socioecológico, no qual você olha o problema em quatro níveis: individual, passando para a casa, a comunidade e a sociedade como um todo.. As mudanças precisam ser trabalhadas em todas essas dimensões para que haja uma transformação sustentável. É também necessário ter recursos adequados.. Um estudo de uma organização australiana chamada Equality Institute publicado em 2019 mostrou que apenas 0,002% de todos os recursos dedicados à assistência para desenvolvimento no mundo (do inglês, Official Development Assistance – ODA)  foi investido na prevenção de violência contra mulheres e meninas nos cinco anos anteriores, o equivalente a 2,04 bilhões de dólares Nos últimos anos, a ONU fez um estudo chamado Respect Women, fundamental para começar um advocacy para mostrar que é possível prevenir a violência contra mulheres e meninas. Até pouco tempo, não havia um corpo de evidência dizendo que a prevenção é possível. Ter esse tipo de evidência é fundamental para atrair recursos para programas que tenham impacto.. E para que a prevenção ocorra, vários setores da sociedade precisam estar envolvidos, como, por exemplo, educação e saúde.

Qual a tua avaliação da vinda a Porto Alegre?
Encontrar estas mulheres me deu muita esperança. Está me dando uma energia muito grande. Estou voltando para casa muito feliz de poder ter conversado com tanta gente envolvida no projeto. Uma coisa é ver um relatório, ler uma revista, assistir a um vídeo, outra é estar em uma sala com trinta mulheres falando como o projeto mudou a vida delas. É outro impacto. Compreendi o senso de comunidade e o efeito multiplicador que o trabalho da Themis tem. Percebi uma sororidade muito forte entre as mulheres, desde o toque até a linguagem. Isso é perceptível na forma como elas se olham, se abraçam, se respeitam. Obviamente, imagino que possa haver disputa de poder, brigas, como em qualquer grupo. Mas o mais importante foi essa sensação de pertencimento, de respeito e amor à Themis. E como a Márcia (Márcia Soares, diretora executiva de Themis) disse: elas são a Themis. Ver esse sentimento de pertencimento criado, essa sororidade, foi muito inspirador, me ajudou a entender muito mais o impacto e o nível profundo de comprometimento dessas mulheres.

 

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