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Aborto no STF: o debate sobre a ADPF 442

Esse artigo foi escrito durante a preparação para as audiências públicas sobre a ADPF 442, que luta pela descriminalização do aborto no País. O texto reúne informações e contextualiza o aborto no Brasil, mostrando a mobilização pela aprovação da ADPF 442, assim como expõe as recentes ondas conservadoras e ataques que defensoras e defensores dos direitos reprodutivos das mulheres vem sofrendo. 

Renata Teixeira Jardim – Advogada Feminista, Mestre em Antropologia Social, Integrante do Cladem Brasil e Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos

foto: Mídia Ninja

O debate sobre o aborto ganha novos contornos no período recente, em especial com a maré verde que ocupou as ruas da Argentina no dia 13 de junho, quando da votação da legalização do aborto na Câmara de Deputados. Foram milhares de jovens que organizaram assembleias em suas escolas e que ocuparam dezenas delas em vigília à votação. Porém, se por um lado se amplia as formas de mobilização em torno das pautas das mulheres e dos movimentos feministas, a resposta dos setores conservadores e religiosos também encontra mecanismos para disseminação. O caso recente de ameaças e escrachos públicos a Débora Diniz, professora, pesquisadora e ativista pelo direito ao aborto legal e das meninas esfaqueadas durante a manifestação pró-aborto no Chile, revelam o cenário de perseguição e ameaça dos e das defensoras de direitos humanos e de como ainda a intolerância e os discursos de ódio desferidos contra as mulheres são ferramentas para manutenção das desigualdades e restrição de direitos.

A contraofensiva destes grupos conservadores no Brasil tem foco no debate que se instalou no país com o ajuizamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) junto ao Supremo Tribunal Federal, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no bojo da qual estão agendadas para esta semana audiências públicas convocadas pela relatora, Ministra Rosa Weber. Na ação, a legenda argumenta que os dispositivos, que criminalizam o aborto provocado pela gestante ou realizado com sua autorização, violam os princípios e direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal quando esta interrupção é realizada até a décima segunda semana de gestação.

Segundo tese dos autores de ADPF 442, a criminalização do aborto descumpre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e da cidadania das mulheres, pois não reconhece a capacidade ética e política das mulheres de decidirem sobre sua reprodução. Por outro lado, apesar de todas as mulheres estarem submetidas a criminalização, esta afeta desproporcionalmente mulheres negras e indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos, onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que aqueles utilizados por mulheres com maior acesso a informação e poder econômico e, neste sentido, viola o princípio da não discriminação. Ancorados por decisões internacionais, afirmam que a negação do aborto pelos serviços de saúde constitui tortura e tratamento desumano ou degradante ao impor a manutenção de uma gestação não desejada, além de violar o direito à saúde, à integridade física e psicológica das mulheres, bem como o direito à vida e à segurança, por relegar mulheres à clandestinidade de procedimentos ilegais e inseguros que causam mortes evitáveis e danos à saúde física e mental. Descumpre ainda o direito fundamental à liberdade e aos direitos sexuais e reprodutivos, por impedir às mulheres o efetivo controle sobre a própria fecundidade e a possibilidade de tomar decisões responsáveis sobre sua sexualidade, sem risco de sofrer coerção ou violência.

Cumpre lembrar que no Brasil, a criminalização do aborto está prevista desde o Código Criminal do Império até os dias de hoje. Apenas em dois casos não são punidos pelo Código Penal de 1940, quando houver risco de morte para a gestante, ou quando a gravidez foi resultante de estupro, o que coloca o país dentre aqueles com legislações mais restritivas no mundo. De lá para cá, alguns marcos importantes para a garantia do acesso ao aborto ocorreram. O primeiro deles foi no âmbito do executivo, que em 2005, reeditou a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos resultantes da Violência Sexual contra a Mulheres e Adolescentes e emitiu Portaria regulamentando a interrupção da gestação nos casos autorizados por lei, sem a necessidade de boletim de ocorrência para situações de violência sexual. Em 2012, com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal autoriza a interrupção da gestação em casos de fetos anencefálicos. E mais recentemente, em uma decisão da primeira turma do STF, por maioria, entendeu que a criminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação é inconstitucional por ser uma medida desproporcional que viola direitos fundamentais das mulheres (HC n. .

Outros elementos importantes para o debate são as pesquisas realizadas no Brasil e também em países onde a descriminalização já aconteceu. A Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, por exemplo, mostra que milhares de mulheres brasileiras recorrem anualmente ao aborto de forma insegura, provocando riscos a sua vida e saúde. Em países onde a descriminalização já ocorreu, estudos apontam para a redução nas taxas de aborto, uma vez que estas mulheres passam a ser incluídas em programas de saúde sexual e reprodutiva, garantindo uma melhor atenção a elas e, em contrapartida, possibilitando a prevenção de futuras gestações indesejadas. Neste sentido, dar vida e concretude às mulheres que abortam, contar suas histórias, revelar quem são, comprovar que se trata de mortes evitáveis é fundamental para sensibilizar a população da necessidade de se pensar sobre este fenômeno que atinge a vida e a saúde das mulheres brasileiras.

É tempo de deixar de lado a hipocrisia e levar a sério definitivamente a vida das mulheres. E de todas as mulheres, porque a criminalização do aborto no Brasil afeta de forma desigual as mulheres, e são as negras e pobres que são as mais atingidas, sem recursos para acesso a meios mais seguros de interrupção da gravidez. Se as últimas decisões do judiciário nos dão esperanças para avançarmos na ampliação dos direitos das mulheres, por meio da ADPF 442, não podemos perder de vista que a luta para a garantia efetiva do direito ao aborto de forma segura e gratuita, a todas as mulheres, passará por outras esferas, em especial de implementação de políticas no campo da saúde e assistência.

 


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