Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Nota de repúdio sobre o caso André Aranha

A Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos repudia os atos de revitimização sofridos por Mariana Ferrer. Nesta terça feira, o país se chocou com as imagens da audiência de instrução e julgamento do processo de estupro de vulnerável pelo qual André Aranha é acusado. A conduta agressiva, humilhante e antiética do advogado de defesa do réu foi autorizada pelo juiz e pelo promotor de justiça, considerado ‘fiscal da lei’ em nosso país. Em razão disso, a Corregedoria Nacional de Justiça foi acionada para que seja aberta uma reclamação disciplinar contra o juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Rudson Marcos por sua atuação no caso. Também o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB deve ser acionado devido à postura do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que representou tortura psicológica e humilhação a uma mulher que estava denunciando uma violência sexual.

É preciso reconhecer que, apesar das previsões legais adotadas nos últimos anos para garantir a dignidade das mulheres, estas medidas não trouxeram uma mudança real na forma de tratamento conferida pelo Sistema de Justiça Criminal, especialmente quanto aos crimes sexuais cometidos contra mulheres, adolescentes e crianças. A leniência do Estado e a inexigência de que tais operadores de direito integrem efetivamente uma perspectiva de equidade de gênero em sua prática jurídica promove campo fértil para a reprodução de lógicas discriminatórias sobre as quais o direito penal foi edificado.

A criminóloga Vera Pereira de Andrade,  estudiosa do tema desde a década de 80, aponta que o Sistema de Justiça Criminal se apresenta como uma continuação do controle exercido sobre as mulheres, em articulação com os demais sistemas e instituições, formais e informais, que sujeitam e cerceiam a autonomia das mulheres. Compartilhamos da percepção da pesquisadora de que o sistema penal é originalmente comprometido com as matrizes patriarcais e capitalistas, apresentando uma natureza seletiva, racista, elitista e machista.

Em muitos dos casos, verifica-se a existência de um processo de avaliação do histórico de vida da vítima por meio de uma análise subjetiva. E, como ocorreu no caso de Mariana Ferrer, uma análise em que julga comportamento das vítimas, em que a mulher é considerada como provocadora da situação, pelo fato de seu comportamento ser considerado “promíscuo” ou “inadequado”. 

A “estratégia” de desabonar a honra feminina utilizando-se de julgamentos moralistas sobre a vida sexual das mulheres é antiga. O que se observou nas imagens divulgadas da audiência foi a tentativa de colocar em dúvida a palavra da vítima, com o objetivo de  construir uma imagem de mulher que não merece a guarida do Judiciário, porque supostamente não adere ao que a sociedade impõe como comportamento feminino.

As estratégias de desqualificação da honra de mulheres a partir de sua sexualidade e de descrédito de suas narrativas a partir de um suposto desequilíbrio emocional fazem parte do que, nas ciências jurídicas e sociais, se entende por Cultura do Estupro, compreendida como um conjunto de práticas culturais que naturalizam e normalizam a violação sexual das mulheres.

Tais situações violam frontalmente o estabelecido no art. 6º, da Convenção de Belém do Pará, pois o direito de toda mulher de viver livre de violência abrange o direito de ser livre de toda forma de discriminação. No âmbito internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou a respeito do assunto em casos prévios, sustentando a necessidade de Estados garantirem atenção jurídica e psicológica às vítimas de violência sexual, assim como assegurarem um espaço seguro e de respeito à privacidade.

O caso ainda faz recordar a performance chilena “Um estuprador em teu caminho”, disseminada internacionalmente no fim de 2019, que se tornou um chamado revolucionário feminista ao denunciar com vozes de massas de mulheres que “o patriarcado é um juiz que nos julga por nascer, e nosso castigo é a violência que não vê. (…) a culpa não era minha, nem onde eu estava, nem como me vestia. (…) O estuprador é você. São os policiais, os juízes, o Estado, o Presidente. O Estado opressor é um macho estuprador”. 

É importante salientar que o medo de uma revitimização semelhante à sofrida por Mariana Ferrer é um dos motivos pelos quais os crimes contra a liberdade sexual sejam extremamente subnotificados em nosso país. Posturas misóginas dos operadores do sistema de justiça apenas criam mais obstáculos às denúncias. Nesse sentido, é urgente a capacitação permanente de integrantes das Polícias, do Ministério Público, do Judiciário e da Defensoria Pública quanto às questões de gênero e raça, conforme previsto pela Lei Maria da Penha (art. 8º, inciso VII), de forma a construir uma cultura jurídica e uma atuação institucional que não se apresentem como uma nova violência às mulheres.

Nota escrita pelas advogadas Domenique Goulart, mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS e sócia da Themis, e Luana Pereira da Costa, mestra em Sociologia e integrante do Conselho diretor da Themis


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