Há 25 anos na defesa e promoção dos direitos das mulheres

Carmen S. Oliveira: “A proteção à criança não é somente dever da família, mas dos cuidadores, da comunidade e do Estado”

No dia em que celebra os direitos das crianças e dos adolescentes, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e a Themis pedem o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e denunciam a estratégia da defesa de Sarí Corte Real de adultizar e criminalizar Miguel Otávio. O menino de cinco anos morreu ao cair do nono andar de um prédio no Recife (PE) enquanto a mãe, a trabalhadora doméstica Mirtes Renata Santana da Silva, era obrigada a levar os cachorros da casa de Sarí para passear, em junho de 2020.

Na segunda audiência de produção de provas para o julgamento de Sarí pela morte de Miguel, realizada em setembro, a estratégia da defesa foi a de adultização e criminalização do garoto. Uma das testemunhas apresentadas foi um psicólogo que trabalha na clínica na qual Miguel era atendido. Ele foi levado à clínica pela própria Mirtes, preocupada com a saúde mental do filho após sua separação do pai da criança.

Assistente de acusação do caso, Maria Clara D’Ávila, advogada do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), explica a surpresa dos assistentes de acusação ao ver o psicólogo na lista de testemunhas. “Mirtes não sabia quem ele era, nunca havia atendido Miguel na Clínica. Apenas sabíamos que ele atuava nessa mesma clínica, mas quem fazia o atendimento de Miguel era outra psicóloga. Ele diz que fez um atendimento inicial, de triagem, do Miguel, neste estabelecimento. Contudo, Mirtes não tem nenhum conhecimento desse fato. O juiz disse que a testemunha estava impedida, mas ele chegou a responder algumas perguntas iniciais para tentarmos entender o porquê de ele ter sido colocado como testemunha de defesa”, explica Maria Clara.

Mesmo com o impedimento da testemunha, a estratégia de adultizar e criminalizar o garoto continuou com as outras testemunhas apresentadas pela defesa. Fenatrad e Themis exigem justiça por Miguel e publicam uma entrevista com a doutora em Psicologia Clínica Carmen S. Oliveira, ex-secretária Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-presidente do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

Leia a seguir:

Carmen S. Oliveira: “A proteção à criança não é somente dever da família, mas dos cuidadores, da comunidade e do Estado”

Qual a sua opinião sobre a estratégia da defesa de adultizar e criminalizar o menino Miguel?
Há vários equívocos nesses argumentos da defesa. Primeiro, uma criança não pode ser considerada culpada por sofrer acidentes na infância. Especialistas sinalizam que até os cinco anos de idade existem algumas características próprias do desenvolvimento que podem favorecer as quedas, como foi o caso de Miguel: pouca capacidade de reconhecer os perigos, a imaturidade na coordenação motora e a desproporção entre o peso da cabeça e o peso total do corpo, o que favorece o desequilíbrio. Portanto, a prevenção dos acidentes na infância deve ser, prioritariamente, responsabilidade dos adultos. Na queda de Miguel, é preciso reconhecer as falhas na conduta da patroa ao deixar a criança sozinha no elevador, mas também as condições inseguras do prédio, ao não prever a instalação de redes de proteção naquele local de acesso aberto.

Uma segunda controvérsia se refere à argumentação de que Miguel era uma criança “traquina”. Se isto realmente era um fato, a patroa deveria ter dado um maior acompanhamento ao menino. Ao contrário, ela o considerou esperto e autônomo o suficiente para ficar sozinho no elevador e, além disto, deparar com uma circunstância completamente desconhecida, uma vez que apertou o botão de um andar acima e não do térreo, onde a mãe se encontrava. Cabe lembrar o próprio depoimento da patroa, em entrevista ao Fantástico: “Eu não achei que seria essa tragédia. Eu acreditei que ele voltaria para o andar, que ele voltaria para o quinto andar. Até porque ele sabia os números, sabia tudo”.

Por outro lado, o que foi categorizado como agitação no comportamento do menino poderia ter sido a sua ansiedade diante da ausência da mãe ou até mesmo uma reação de insegurança e medo diante de um possível abuso emocional sofrido no manejo da situação por parte da patroa. Os estudos comprovam que, geralmente, a negligência física na infância se faz acompanhar de negligência emocional, ou seja, de uma omissão afetiva, sendo que a pobreza e o racismo são alguns dos fatores que aumentam o risco deste tipo de maus tratos. Por isto, é pertinente indagar se esta mulher teria o mesmo comportamento se no lugar de Miguel estivesse um filho da mesma idade de uma de suas amigas ou de sua família.

Quais são os direitos da criança que são violados nesse caso, do ponto de vista da legislação?
O que está violado é o princípio básico de assegurar a proteção integral da criança. O ECA, baseado na Convenção sobre os Direitos da Criança, sinaliza que esta proteção não é somente dever da família, mas dos cuidadores da criança, da comunidade em geral e do Estado. Quando a patroa aceitou ficar com a criança, ela assumiu a responsabilidade de seu cuidado. Ela não apenas foi omissa no cuidado, como causadora da situação que levou o menino à morte.

Ficamos sabendo que a clínica que atendia o menino foi depor como testemunha de defesa. Quais são os limites de atuação de um profissional na área de saúde mental sobre seus pacientes, sendo que foi uma criança e que já morreu?
Ainda há dúvidas se o psicólogo acompanhava Miguel ou se era apenas um profissional da clínica em que o menino era atendido. Caso ele fosse o seu psicoterapeuta não poderia testemunhar a favor de alguém acusado de cometer crime de abandono de incapaz. O artigo 2º do nosso Código de Ética explicita o que está vedado ao psicólogo em tal contexto: “Ser perito, avaliador ou parecerista em situações nas quais seus vínculos pessoais ou profissionais, atuais ou anteriores, possam afetar a qualidade do trabalho a ser realizado ou a fidelidade aos resultados da avaliação”.

A hipótese deste psicólogo não ter acompanhado Miguel também o impediria de ser testemunha, pois demonstraria conivência com atos negligentes e criminosos, como deixa claro o item “a” do artigo 2º: “Praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão”.

O que parece ter determinado esta estratégia da defesa é montar uma narrativa de que Miguel tinha algum transtorno mental. Ou seja, parte-se de uma patologização para culpabilizar a criança.

 


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